quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

FIGURAS DA IMANÊNCIA François Julien

Há o desconforto constante de se estar diante de uma tradução impossível. Como dar conta do espírito totalizante do pensamento chinês, de seu impulso contante para dizer tudo - céu, terra, homem, príncipe, vagabundo...- em um só gesto? Julien dá conta muitíssimo bem de parte da tarefa, que é fornecer, através da explicação minuciosa de alguns hexagramas, um vislumbre das bases do pensamento chinês. Não podemos falar exatamente de uma visão de mundo, devido às mutações que o sentido do I Ching (e com ele, o pensamento chinês) sofre ao longo dos séculos e milênios, mas sim de uma espécie de base cultural, um ponto fixo de referência que serviu como farol para a cultura chinesa, talvez com a bíblia e os clássicos gresgos para o Ocidente. Há dois grandes méritos no livro. O primeiro é tentar dar conta da impossibilidade de tradução sem brevidade. Há alguma reflexão -não vocalizada, mas perceptível em termos de método, de escritura, de escolhas- sobre o como apresentar o monolito da cultura chinesa em termos que não impossibilitem que este texto permaneça chinês, mas que sejam minimamente compreensíveis para um ocidental. O que é feito então é "narrar" minuciosamente as linhas explicativas dos hexagramas, esclarecendo o que as alegorias chinesas significam, sua ancoragem no pensamento chinês. Haverá faltado talvez uma preocupação histórica com o desenvolvimento e a variação dos sentidos dos hexagramas, mas esse é um problema contornado por Julien através da eleição de um único sábio canônico como referência para seu comentário. Mesmo aí é possível perceber uma espécie de espelhamento em relação ao I Ching: Julien escolhe um ponto fixo de referência a partir do qual pode imprimir seu próprio comentário, mantendo um equilíbrio bastante produtivo entre unidade e variedade.

Esta dinâmica é a base de todo código verbal e linguagem, e que o I Ching dramatiza pois a projeta sobre a possibilidade de representação do próprio universo, humano e divino. Julien chama a atenção para isso a todo o momento, para o fato do livro ser essencialmente uma combinatória extremamente complexa que tem sua gênese em meros signos opositivos e binários, yang e yin, céu e terra, continuidade (_) e ruptura (--). Esta insistência, embora pareça esquecer que o I Ching é essencialmente um código, portanto criticável, permite-nos penetrar no espírito do livro, o do jogo universal, da própria existência como os lances de um jogo contínuo. É uma visão confortadora, que desarma a angústia da vida com a certeza de que há fluxo, ainda que traumático (estranho paradoxo, uma contradição substantiva) do viver, e que este fluxo tem um sentido ético, a que poderemos nos referir em seguida.

O segundo mérito é exatamente a dimensão imanente (e ética) da base da cultura chinesa. O campo e o horizonte da existência humana, e único lugar possível para o surgimento de eventos, é o universo ético da vida prática e pública. O completo desprezo do I Ching pela dimensão dos deuses, sua abdicação de utilizá-los como penhor moral dos atos humanos é o que estabelece a distinção essencial entre Ocidente e Oriente. Ainda que tenhamos passado por Iluminsmo e Revolução Científica, nossa mente, nossa forma mental terá sempre a metafísica como ponto de referência, o que significa que invariavelmente tentaremos entender nossa ação sobre o mundo e a vida através de categorias pouco imediatas, distantes demais da vivência concreta do trabalho, dos eventos, dos combates. O I Ching e, portanto, a cultura chinesa, concebe apenas o universo da vida concreta como digno de fornecer sentido á ação humana. Julien consegue apresentar muito bem esta distinção, assim como os conceitos que norteiam a formação do texto do I CHing: o yang e o ying, a concepção política hierárquica e profundamente conservadora, o entendimento de que a vida humana deve ser modelada em relação à natureza, e, finalmente, a delicada tensão entre a ruptura e a continuidade, a transformação, a sucessão de acontecimentos.

O livro das mutações é impressionante, e após a apresentação de Julien ele torna-se ao menos um pouco mais compreensível. Especialmente, como disse anteriormente, somos apresentados a uma maneira de conceber o cosmos em que a oposição entre homem e mundo não é uma ruptura a ser recuperada exclusivamente através de um gesto redentor ou iluminado; antes, essa oposição e seus derivados são constantemente apagados e renovados. Tanto redenção quanto queda ocorrem continuamente. Se a ação humana deve ser ética, isso se dá não devido a um decreto divino, mas porque há a compreensão de que o que confere sentido a essa ação é algo muito próximo ao prazer estético, a possibilidade de troná-la parte de uma narrativa coletiva, universal, política que o I Ching tenta estabelecer e teorizar.

A grande questão é que necessariamente esta paixão pelo imanente evita revoluções e inovações legítimas. Apenas por um exagero geográfico falamos em Ocidente, e mesmo neste caso somos obrigados a apagar e calar uma série de diferenças que inúmeras revoluções e traumas causaram a nossa cultura. Não é o caso chinês, que tem uma história contínua de 5000 anos. Esta continuidade é poderosíssima, e benigna na medida em que não condena seus filhos à infelicidade que fatalmente um ocidental sentirá: as metas desse são sempre impossíveis porque a Grande Lei que as legou no fundo não existe. Este oco constituinte é o que nos torna tão perversos e aflitos, mas é também que exige a inovação contínua, como um tubarão que não possa dormir. Um chinês não viverá talvez essa infelicidade, mas me pergunto se a existência em um universo fechado, em que a lei, ainda que dada pela experiência, é irremovível, não é também um tipo de angústia.

Nenhum comentário: