terça-feira, 9 de novembro de 2010

MIGUEL E OS DEMÔNIOS, Lourenço Mutarelli


Talevez fosse exagerado falar em "um estudo sobre o mal" a respeito desta narrativa de Mutarelli, mas nos seus silêncios ela projeta muito mais qualidade e complexidade do que sua aparência despretenciosa teria a dizer. As descrições, quase rubricas de roteiro, ajudam na ilusão de que se trata apenas de uma narrativa policial tola, meio noir, meio trama fantástica. Mas aos poucos elas vão se tornando irônicas na maneira que se relacionam com a narrativa, assim como os diálogos no argot baixo-urbano.Então, retornando ao início, onde está o mal na vida de Miguel?

Não na prostituta-travesti, pela qual se apaixona e que pode ou não ser o avatar de um demônio gnóstico. Não no pai das enteadas, que pretensamente abusou de 2 meninas. Não nos crackeados que assaltas as lojas. Mas sim em Miguel, na violência grande que entende como pequena, nas vinganças e extermínios. A grande lição é que o demônio veste as cores do homem, e se ele existe do lado de fora do ser humano, é um mal menor.

Estamos então em um mundo esvaziado de um além-mundo, em que o sentido cabe apenas no próprio homem, e exatamente nesta tarefa ele falha miseravelmente. E o mundo é um deserto, habitado por desejo e pelos guardas nada gentis do desejo. Mas o mal, nesta narrativa, é o desejo? Ou antes este funciona como um caminho de redenção, uma energia que impede que o peso da culpa e da ansiedade que o mal sofrido e provocado trazem esmague o homem, como umescudo anti-gravidade ou uma oral gnóstica. Assim, se entregar ao desejo é uma solução, ainda que torta: o mal mesmo é inevitável, todos sucumbem a ele. Suas consequências, no entanto, podem ser caladas. Uma vida sem manchas não porque não haja sangue e lama, mas sim porque elas não colam à pele.

Esta é uma visão psicopática, daí o profundo mal-estar e a sensação de vertigem do livro. Apesar do tom neutro, da absoluta falta de um discurso mais elevado e poético, a narrativa consegue tocar em algum ponto sensível, quase provocando uma reação reptiliana ao que se lê.