segunda-feira, 28 de maio de 2012

Guerra aérea e literatura, de W. G. Sebald

O tema da culpa alemã na segunda guerra é um dos legados insolúveis que o regime nazista deixou para a posteridade. É impossível evitar, por exemplo, acaso diante de uma qualquer narrativa sobre a guerra, a sensação de justiça diante da devastação que o país sofreria nas mãos dos aliados. Não há, aí, treinamento político que evite a felicidade irracional diante do sofrimento alemão. Por outro lado, se deixamos a discussão no fundo das sensações e impressões, algo que pertence ao irracional, na mesma dimensão, portanto, do carisma de Hitler e da histeria dos comícios, tiramos a possibilidade de discussão real da responsabilidade ontológica desta entidade fantasmagórica que é a coletividade alemã da década de 40 em relação à guerra e ao extermínio dos judeus, dos eslavos, dos ciganos, dos gays, dos marxistas (e de quem mais? o império nazista trazia uma abertura vertiginosa às possibilidades de massacre). É esta dimensão de culpa real, ao mesmo tempo política e conscienciosa, que faz com que uma população inteira se ponha como projeto o extermínio e a tortura, o que torna o problema tão difícil de pensar. Pensar na culpa alemã significa de saída admitir a possibilidade de uma politeia perversa; uma politeia do inferno, portanto. O diferencial do regime nazista seria esse: para além da manutenção de categorias arcaicas, xenófobas e racistas, como categorias políticas válidas, teríamos também em jogo uma novidade, um absoluto político que se confunde com o mal.

A crueldade do regime não é uma questão de grau de violência, ela trazia uma novidade política, qual seja, o comprometimento  consciente (e não cego, para mim o nó está aí) da população que o sustentava com uma espécie de tanatofilia, o termo tanatofilia, aliás, já é por si uma abominação. Se essa hipótese é válida, e a população alemã conscientemente aceitou o projeto nazista, ainda que talvez isto nunca tenha sido dito (e provavelmente seria indizível enquanto uma forma de contrato social aceitável) surgem dois problemas. O primeiro diz respeito à mera escala da coisa, milhões aceitando e sustentando como projeto para sua comunidade o extermínio de milhões. Ainda que isso possa ser racionalizado como uma espécie de razão entre o mal necessário e ganhos (de territórios, recursos, mas especialmente de presença, de mando, de prestígio nacional), no nazismo temos uma forma de promoção ideológica da destruição e do sacrifício como bens, esses são seus horizontes e sua razão de ser, logo a razão entre ganho e destruição que guia toda lógica do capitalismo não vale plenamente aí. Teríamos de concluir então que milhões de pessoas aceitaram esta politeia como uma maneira válida de organizar seus esforços e prazeres. O segundo problema diz respeito  à possível universalidade da aceitação do mal: a sustentação que o povo alemão deu ao regime nazista até o último momento e, na verdade, para além da queda e para além da revelação do holocausto, foi possível devido a uma particularidade da cultura alemã naquele momento histórico ou teria sido possível em qualquer outro lugar do mundo, em qualquer outra época? É necessário o caldo de cultura específico da Alemanha após a Grande Guerra e durante Weimar para termos um povo de milhões produzindo e mantendo o nazismo, ou o fascismo italiano e espanhol, o colonialismo inglês, belga e japonês, o stalinismo foram também formas de regimes tanatofílicos? Até certo ponto sim, especialmente no caso do colonialismo e do stalinismo, mas o regime nazista ainda me parece uma aberração devido ao lugar que a morte tinha na ideologia do partido. É muito fácil em abstrato supor que qualquer povo, confrontado com as condições de vida da Alemanha das décadas de 20 e 30 e com a mistura de arrogância, ressentimento e sofrimento que caracterizavam os alemães daquele tempo teria seguido pelo mesmo caminho, mas o fato é que até o momento em que escrevo, apenas a Alemanha gerou um tipo de política como a nazista.

O livro Guerra aérea e literatura de W. G. Sebald, parece refletir sobre o tema da culpa alemã, sobre como a consciência alemã no pós-guerra é marcada pelo trauma da destruição e pela culpa pelas ações do regime. Humilhada, a nação alemã se calou sobre seus próprios sofrimentos, se negando a produzir qualquer reflexão importante sobre o sofrimento dos bombardeios aéreos que a Alemanha sofreu logo a partir de 1942. O argumento de Sebald parece ser que a literatura, que poderia ter fornecido um caminho espiritual para se pensar o sofrimento nos bombardeios e a participação dos alemães na II Guerra de um modo geral, não foi capaz de pensar sistematicamente o tema. Embora trauma e silêncio sejam considerados pares naturais desde a reflexão sobre as narrativas do holocausto, Sebald reclama uma espécie de dever por parte dos escritores de registrarem a experiência nacional em palavras. Um dos argumentos mais fortes, personalíssimos já que Sebald se refere a sua própria geração, é que ao silenciar sobre o trauma do bombardeio e da reconstrução de um modo geral, as gerações que passaram pela experiência negaram a seus pósteros um traço fundamental de sua identidade. O livro é, então, um acerto de contas geracional de Sebald, nascido em 1944, com seus pais e avós, algo que diz profundamente respeito à experiência alemã no século XX. Experiência, aliás, que naquilo que tem de monstruoso (e até o silêncio sobre o próprio sofrimento, considerando a escala da coisa, de como as cidades alemãs sofreram, é também monstruoso) é exemplar para o resto da humanidade, que parece tão estranha hoje em dia. Esta estranheza é antecipada pelos alemães, eu suponho. Outro tema de Guerra aérea e literatura é uma sutil discussão e defesa de Sebald de seu próprio estilo. Sua afirmação básica sobre isso é que, das poucas obras que representaram a experiência do bombardeio, as que o fizeram de forma mais direta, meramente descrevendo o curso de pesadelos que pessoas que sofreram as tempestades de fogo (literalmente) em Dresden ou Hamburg, forma mais eficientes na representação do evento do que as narrativas mais estilizadas que procuraram estetizar o ocorrido.

A meu ver ambos os temas têm como fundo a reflexão sobre a culpa alemã, e em vários momentos do ensaio Sebald encaminha a discussão para esse tópico. Há alguns pontos cegos, no entanto, que eu gostaria de pensar um pouco. O primeiro é a ideia quase aterradora de uma espécie de culpa cósmica diante do evento da II Guerra Mundial. Em algum momento da primeira parte do ensaio, quando Sebald ainda está preparando sua argumentação e se pergunta por que os bombardeios contra as cidades alemãs não puderam gerar grandes narrativas, ele levanta o tema da mudez das vítimas, de sua incapacidade de representar o horror por que passaram. Nesse ponto é apresentada  rapidamente a possibilidade de que os alemães considerassem justo o que estavam sofrendo. Esta  noção, se pensada radicalmente, supõe algum tipo de culpa coletiva tão terrível que é necessário pensá-la com a mesma dimensão de Auschwitz. A recriação dos horrores dos bombardeios é dantesca, e exigiria, segundo a hipótese de Sebald, uma história natural da destruição, como se o escopo da catástrofe fosse tão imenso que escapasse do reino humano. Esta não é uma caracterização muito diferente do Holocausto, mas, à imensidão da vitimização dos internados, praticamente irrepresentável, inadmissível para qualquer sujeito, insubjetivizável, digamos, devido ao absurdo e à injustiça do evento, corresponderia no povo alemão uma imensidão de culpa, o que o impediria também de considerar a si mesmo vítima dos sofrimentos por que passam. Há duas impossibilidades de vitimização aí, uma por excesso de inocência, outra por excesso de culpa, que talvez se encontrem nos extremos. Repito, então, que a escala da coisa impede a humanização desse tipo de sofrimento, e aí estaríamos diante de alguma dimensão do sagrado ou do sublime, que lentamente através de esforços contínuos e trôpegos tentamos trazer para a esfera do humano. Toda a reflexão sobre o shoah está dentro deste trabalho, de roubar a Baal os corpos que devorou e conceder-lhes de novo existência humana e histórica. O contraponto disso do lado alemão significaria, talvez, pensar que essa culpa pertence à linhagem dos erros humanos e da humana condição, mais que ao universo do declínio dos deuses e do apocalipse. Infelizmente este trabalho não foi feito, o que garante insidiosamente a permanência do nazismo entre os alemães, possivelmente entre todo o Ocidente. Imagino que o trabalho de Adorno se encaixe perfeitamente nesta tentativa de combater o nazismo simbolicamente após a queda e tentar garantir sua desmistificação, o que vale dizer, sua permanência fantasmal. É preciso notar, no entanto, que este trabalho suporia a superação de uma cadeia circular e simbólica difícil de ser quebrada: rehistoricizar o sofrimento dos bombardeios significa superar a culpa, de alguma forma liberar a história alemã do signo da abominação, do obsceno, o que vale dizer, também, possivelmente, tirá-la da suspensão do sublime silêncio em que o pós-guerra a encarcerou. O que significa, e é isso que Sebald evita dizer, ou não ousa dizer, embora todo seu texto aponte para isso, admitir toda a imensidão da culpa, do horror produzido naquele lugar do mundo, por aquele povo, ao sustentar e aderir aos valores daquele regime. Superar a culpa significa admitir toda sua extensão, mas esta plenitude é, de saída, insuportável, daí a transformação desta culpa em uma experiência de abominável/sublime. Não se fala, não se representa simbolicamente, sob risco de prisão, os signos do nazismo. O fato do nazismo ter sido silenciado coletivamente (e isto muito além do perigo de um retorno fascista no pós-guerra imediato) o tornou um fetiche, sua ausência o tornou indestrutível.


O silêncio de Sebald quanto ao encontro das duas dimensões de horror, da imensidão da vitimização e da culpa pela coletividade dos internados e dos alemães, e sua impossibilidade de abordá-la, senão dentro de um esquema benjaminiano de universalidade da ruína capitalista, preocupando-se com o sofrimento daqueles corpos por acaso alemães, mas esquecendo-se de fazer a crítica de suas escolhas políticas (ou colocando-as no mesmo saco da estupidez humana na modernidade), pode parecer a princípio a única possibilidade real de tratar o problema, mas infelizmente não dá conta de fato de superá-lo.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Tentativa de organização

Há obviamente prazer no silêncio, a negação disso é impossível para quem lida com palavras, desde que um mínimo de franqueza seja o alvo. Há mais que prazer no silêncio, há conforto. E, no entanto, há também, como contraponto de uma música privada que foge a ser plenamente entendida, a vontade e a potência de escrever. Não há nada de confortável na escrita, e prazer, nesse caso, é sempre um termo escorregadio, que diz muito e pouco ao mesmo tempo. Talvez haja necessidade: a escrita é necessária. Assim, solenemente reinauguro essas postagens, embora poucos hajam lido até hoje os textos que circulam por aqui, o que francamente me agrada: dá uma certa liberdade, transforma isso em um caderno mais que em um medium. Obviamente isto mudará, daí escrever aqui e não em um caderno, que receberia melhor a liberdade, porém, a condenaria a um esquecimento incontornável. Uma certa velhice deverá vir do fato de uma voz não permanecer ilegível, o que cria exigências e expectativas, mas por enquanto eu tenho a liberdade de ser irresponsável, o que basta.

Então, tendo necessitado escrever de novo, não só aqui, mas em outros lugares, de outras formas, talvez fosse o caso de dar um sentido melhor a este blog. De um modo geral ele foi utilizado como uma lugar para registrar impressões de leitura, notas ou qualquer coisa do tipo. Ainda não é a crítica, mas tampouco achismo, o que dava aos textos ao lado de uma flexibilidade formal bem grande uma falta de alento que sempre me incomodou. Valerão, talvez, como exercícios de leitura, sem que sejam ainda uma arte de leitura, o que tornava difícil justificá-los aos meus próprios olhos. Vou me propor, então, algo diferente, uma pequena contrainte, algum método. Manterei o comentário de livros, de preferência de literatura contemporânea, e também a liberdade de não fazer ainda crítica aqui. O exercício novo, que espero consiga levar adiante, será o rastreio de sintomas e silêncios, ou seja, tentar entender o que determinado livro silencia e o porquê. Isso pode ser feito de muitas maneiras, e esse é o caminho de muitos exercícios críticos. Haverá, então, campo fértil para experimentação. O interesse desse pequeno imperativo é tentar entender até onde o negativo pode conduzir e, com sorte, criar aos poucos uma consciência mais completa de alguns textos pelos quais transito, o que, em minha cabeça e crença, significa antes de tudo entender e rastrear seus negativos. Após isso, talvez a crítica seja possível.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

MIGUEL E OS DEMÔNIOS, Lourenço Mutarelli


Talevez fosse exagerado falar em "um estudo sobre o mal" a respeito desta narrativa de Mutarelli, mas nos seus silêncios ela projeta muito mais qualidade e complexidade do que sua aparência despretenciosa teria a dizer. As descrições, quase rubricas de roteiro, ajudam na ilusão de que se trata apenas de uma narrativa policial tola, meio noir, meio trama fantástica. Mas aos poucos elas vão se tornando irônicas na maneira que se relacionam com a narrativa, assim como os diálogos no argot baixo-urbano.Então, retornando ao início, onde está o mal na vida de Miguel?

Não na prostituta-travesti, pela qual se apaixona e que pode ou não ser o avatar de um demônio gnóstico. Não no pai das enteadas, que pretensamente abusou de 2 meninas. Não nos crackeados que assaltas as lojas. Mas sim em Miguel, na violência grande que entende como pequena, nas vinganças e extermínios. A grande lição é que o demônio veste as cores do homem, e se ele existe do lado de fora do ser humano, é um mal menor.

Estamos então em um mundo esvaziado de um além-mundo, em que o sentido cabe apenas no próprio homem, e exatamente nesta tarefa ele falha miseravelmente. E o mundo é um deserto, habitado por desejo e pelos guardas nada gentis do desejo. Mas o mal, nesta narrativa, é o desejo? Ou antes este funciona como um caminho de redenção, uma energia que impede que o peso da culpa e da ansiedade que o mal sofrido e provocado trazem esmague o homem, como umescudo anti-gravidade ou uma oral gnóstica. Assim, se entregar ao desejo é uma solução, ainda que torta: o mal mesmo é inevitável, todos sucumbem a ele. Suas consequências, no entanto, podem ser caladas. Uma vida sem manchas não porque não haja sangue e lama, mas sim porque elas não colam à pele.

Esta é uma visão psicopática, daí o profundo mal-estar e a sensação de vertigem do livro. Apesar do tom neutro, da absoluta falta de um discurso mais elevado e poético, a narrativa consegue tocar em algum ponto sensível, quase provocando uma reação reptiliana ao que se lê.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

ENSAIOS DE LITERATURA OCIDENTAL, Erich Auerbach

Estes ensaios em conjunto acabam com o mesmo nível de Mímesis ou de qualquer outra obra de Auerbach sobre Dante, mérito tanto dos organizadores quanto do autor. É de longe um dos maiores ensaístas do século XX. Não se propõe, obviamente, aos malabarismos teóricos da crítica francesa ou da hermenêutica, mas é invariavelmente profundíssimo. Poderíamos apontar talvez o sentido do livro dizendo que "Ensaios..." trata da fundação da Literatura Ocidental, ou pelo menos, através de uma panorâmica sobre certos momentos importantes, como Dante, o classicismo francês ou Baudelaire, há a apresentação de certas forças subterrâneas que Auerbach propõe como estruturadoras da mente Ocidental: em primeiro lugar sua grande contribuição para a história da literatura, o "sermo humilis" cristão, o registro menor da linguagem que permitiria 800 anos após a queda do império o surgimento de uma literatura em vulgar, com os trovadores, Francisco de Assis, e, finalmente, Petrarca e Dante.

Apesar da importância dos ensaios sobre o "sermo humilis" e a continuidade da cultura romana na Europa medieval, o ensaio sobre Montaigne é a obra-prima dentro da obra-prima. Nele há a compreensão de como surge a figura do escritor e de todas condições para sua existência. O homem culto, mas não especialista, que fala abertamente para outros homens cultos é a grande idéia renascentista que ficaria de legado para o futuro. É no escritor que está a base da sensibilidade criativa ocidental a partir da modernidade, a ponto talvez deste papel propor um modelo imitativo laico, um caminho para salvação que não passa pelo Cristo ou a mísitca.

O livro de Auerbach trata da fundação da literatura Ocidental, mas tarta também do sentido possível deste termo "literatura Ocidental". Auerbach parece propor que a cultura do Ocidente se forma através da transição de dois momentos, ambos se referindo diretamente à influência que a teologia cristã, especialmente o discurso público desta teologia, tem sobre a cultura. O primeiro momento seria o da transição da alta cultura latina para a cultura cristã, ela própria, segundo auerbach, uma forma baixa de cultura latina. O longo processo de amálgama e crítica desembocaria no surgimento das literaturas em vulgar no fimda Idade Média.

O segundo momento é a evolução natural e atualização deste longo movimento, quando, no renascimento, se incia a possibilidade de uma cultura laica, não religiosa e nem tematicamente ligada ao tema da redenção. Os humanistas e Monataigne em um primeiro momento como os propagandistas deste novo espírito, e mais tarde Pascal, e os maneiristas como herdeiros críticos deste ensaio de uma cultura não-religiosa. É um pouco ambíguo, especialmente no ensaio sobre Pascal, quanto é relamente possível uma cultura compeltamente laica, ou seja, uma cultura que não se precoupe com culpa nem redenção humana. Em termos textuais a cultura Ocidental a partir do Renascimento é a evolução da linguagem menor proposta pelo cristianismo pós-Roma. Em temros temáticos, do sentido do que se esceve, é necessário perguntar se cada história e cada poema desencantado não busca secretamente um fim para si, e nesta teleologia não abraça de novo, ainda que transfigurado, o ideal cristão e a imitação de Cristo.

Nos ensaios há a exclusão da cultura inglesa e alemã. segundo a área de atuação de Aurebach. É uma pena, porque exatamente a literatura inglesa do século XIX e a alemã a partir do expressionismo seriam o tubo de ensaio para o terceiro momento possível deste diálogo com o cristianismo, qual seja, seu esquecimento em nome de um novo motor espiritual. Definir este motor, entender como se relaciona com o milênio e meio que o precedeu é a tarefa imensa dos novos Auerbachs, que, quiçá, levarão alguns séculos ainda a entender o que nos move agora.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

AS ESTRELAS DESCEM À TERRA, Theodor W Adorno



O livro de Adorno é escrito à maneira de uma monografia acadêmica, ou um relatório ao instituto de Pesquisa. Não se trata, como é dito algumas vezes ao longo da obra, de criticar a própria astrologia, que é deixada em paz enquanto ocultismo, mas sim de demonstrar o quanto as colunas de astrologia como manifestações de uma cultura alienada e massificada repetem e doutrinam os leitores em termos de comportamento adequado para um indivíduo de sociedade capitalista. Ou seja, a preocupação de Adorno é demonstrar que mesmo em escala microcósmica a colonização do pensamento que a cultura capitalista provoca é atuante.

É bastante impressionate o caminho demonstartivo que nos faz perceber que mesmo algo tão banal quanto uma coluna astrológica é um canal para a colonização capitalista. Os valores de conformismo, de valorização do "científico", do 'especialista", a capacidade que o capitalismo espetacular tem de se imiscuir e regular mesmo o mais privado como a intimidade e o prazer- que se torna lazer, ou seja, não o tempo livre para o ócio e o campo livre do desejo, mas tempo disciplinado que deve ser preservado para a saúde mental e a adequação, ou seja, para a rotina sanitária que impede que a disciplina de trabalho leve ao suicídio. É interessante o quanto a percepção de um Adorno, ou de Benjamin e em paralelo de um Debord e Foucault, consegue dar conta da lógica do capitalismo do bio-poder, ou do capitalismo unidimensional, ou do capitalismo espetacular, à preferência.

Como uma nota pata atestar a contemporaneidade deste pensamento, podemos evocar o quanto o gesto afetivo da amizade e da curiosidade foi transformado "personal net-working", em redes sociais- que são mantidas como forma de expandir ao campo do afeto a persona bio-política que serve ao trabalho. Personalidade e amizade tornadas maneiras mais intensas de promover a própria capacidade de trabalho, e comunicação tornada ferramenta de controle.

O que sempre admirei em Adorno foi sua capacidade de colocar a esfera do trabalho dentro da discussão teórica em termos que não fossem puramente econômicos, como é o caso do marxismo pós-Marx. Este marxsimo parece nem se dar conta dela às vezes,desta dimensão do organismo mental do sujeito que é subjugado por mecanismos concretos de controle e disciplina, o grande adversário, aquilo a que é necessário se opor.

Quanto ao livro em si, os mecanismos descritos estão presentes teoricamente em outras obras de Adorno, especialmente na DIALÉTICA DO ESCLARECIMENTO, como a introdução de Rodrigo Duarte aponta. Talvez o livro tenha valor excepcional como uma demonstração de método crítico, um estudo de caso em que a Teoria Crítica é utilizada sobre um objeto menor.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

OS EXILADOS DE MONT PARNASSE Jean Paul Caracalla


Seria muito bom poder dizer que este é um livro de história da cultura, ou pelo menos um bom livro sobre um momento e uma geração excepcionalemtne importantes na história da literatura, o de escritores anglófonos que povoaram Paris na primeira metade do século XX. Joyce, Fitzgerald, Hemingway, Beckett, entra tantos outros, além da incontável constelação de editores, entusiastas, mecenas, etc, etc. Enfim, o período mereceria uma abordagem com um mínimo de talento e de profundidade.

O livro de Caracalla é, ao contrário, um superficial (e mal escrito) caldo de anedotas e historietas sobre estes personagens. Estranhamente o autor não consegue nem mostrar um mínimo de entusiasmo pela matéria que se propõe a contar, o que nos poupa de exclamações e de personagens pretensamente chocantes, a não ser talvez no caso de Joyce e de Fitzgerald, mas parece aí mas um caso de antipatia de um escritor medíocre em relação a figuras que necessariamente não poderia entender.

É interessante comparar esta obra com o "Instante Contínuo", de Geoff Dyer, aí sim uma mistura de narrativa, história e ensaio, talvez não propriamente profunda mas que ao menos respeita o fluxo do espírito. Caracalla o massacra...

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

LIÇÕES SOBRE OS 5 CONCEITOS DA PSICANÁLISE Juan D. Nasio


Nasio é um grande comentador de Lacan, essencialmente porque tem o compromisso com a clareza. Mas isto é pouco. É grande comentador também porque, apesar deste compromisso - ou talvez exatamente por isso - não dilui nem desproblematiza a psicanálise de Lacan, especialmente, mas também a de Freud, o que seria uma tentação para qualquer um. O grande problema é que seu comentário, para que seja de fato utilizável, ou seja, para que seja possível se tornar um elemento de diálogo e de reflexão mais do que simplesmente um instrumental superficial, exige a leitura exaustiva de Lacan, como de resto qualquer outra coisa que se refira a ele.

Talvez seja esta obstrução o verdadeiro elemento dialógico para alguém como eu, que não teve uma leitura muito extensa da obra lacaniana. A interrogação a estas obras monumentais que não se revelam aos poucos, mas tão somente em bloco e através de esforço contínuo. É um índice de um fracasso fundamental para um escritor que ele precise de milhares de páginas para dizer? A mim alguns como Hegel e Heidegger se encaixam nesta categoria, e há um traço mistificador aí, nesta absurda preocupação pelo fechamento, pela minúcia, pela arquitetura meio rococó, em que a complexidade está tanto no grande plano quanto no detalhe do adorno. Este é o contrário também da grande literatura, em que necessariamente temos a profusão, e o detlhe, e o adorno, mas também a redudância e a repetição daquilo que seja o "isso" do autor como um vício amoroso do estilo. Por trás de Dom QUixote temos sempre a alienação, por trás de Shakespeare sempre a reflexão sobre o poder e a pulsão, sobre desejo, enfim, e isso em qualquer outro grande autor, com seus vícios e dilemas.

Mas em Lacan, qual seria ete mínimo possível que move a obra? Talvez o gozo ou o "Grande Outro", ou o objeto "a", e de fato estes conceitos cercam sua obra e servem como nós de comunicação com outros e outras experiências, como numa sucessão de mutações. Mas parece sempre necessário, ou pelo menos é isso o que a intuição diz, ler todos os seminários escritos para que a promessa nunca cumprida de um sentido, ou pelo menos uma igualdade terminológica qualquer, como a=c, seja atingida. Obviamente, este não-fechamento será também uma virtude estilística, o que levará o estudo de Lacan ser mais um sacerdócio e uma exegese (como o de Hegel e de Heidegger, aliás) do que propriamente um exercício ou um diálogo, e seria aí que estaria a generosidade do gênio e talvez sua garantia de permanência, mas quem saberá dessas coisas? O argumento de que o objeto do texto é complexo me parece falso. E, enfim, há Freud, que se repete a cada livro e que se dá à leitura sem a necessidade de malabarismos.