quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

VEREDICTO EM CANUDOS Sándor Márai

O que há de novo no romance de Márai é a união entre Canudos e a utopia, ou a redenção, é quase um estrangulamento da maneira que implico os 2 conceitos. Novo não exatamente, uma "Cidade de Deus", um lugar da lei final, está implicada em qualquer evento como Canudos em qualquer autor, inclusive Euclides, mas a ênfase dada por Márai é nova.

E tão intensa, e em certo sentido tão mal-pensada, que acaba por anular a dimensão trágica do evento. Há uma construção interessante ao redor do positivismo da República, como se a primitiva tecnocracia, que poderia representar as grandes tecnocracias, como o nazismo, o stalinismo ou o capitalismo corporativo, fosse flagrada em uma espécie de nudez obscena. Vê-la-emos como este jogo meio ridículo entre civilização encenada, de verniz, e a prática real do extermínio e da sujeira. Opondo-se a isso há uma fome de experiência imediata, sem representação e artificialidade, que seria Canudos. Acima de tudo o lugar do incogniscível, como o médico que abandona a esposa e a casa para viver lá. O lugar do gozo, supomos, ou do Sublime, do grande Outro.

Que no entanto é racionalizado na língua alienígena que é o inglês, uma ótima percepção. "Veredicto em Canudos" pode ser uma sessão de análise, aproveitando-se dos parágrafos finais de Euclides quando ele tenta entender a "loucura" (no sentido clínico, mais que filosófico) da nação. Mas, de novo, antes desta pergunta científica, há a construção lenta de um episódio trágico. Este mergulho no absoluto, na noite disforme, que a princípio Márai aproveita, é neutralizado na narrativa, em que tudo se explica, em que nada se explica. Há talvez duas maneiras de narrar,uma que mantém a tensão, que recusa o entendimento e aceita a tragédia, e outra que, ao nomear o que aconteceu de "trágico", e que concebe o relato como uma meta linguagem, acaba por perdê-lo, talvez por trair os demônios, por não pagar a parte do diabo, que é a seguinte: para conhecer o abismo é preciso dizê-lo em detalhes, em suas partes; mas para fazer isso fica vetado ver como estas partes formam um todo. O que é nomeado no trágico é o silêncio do absoluto, tudo aquilo que o cerca sem ainda chegar a ele. Nomeá-lo, esquematizá-lo, mesmo que numa fábula como se fosse possível tocá-lo, isto é perdê-lo.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

CIDADE DE QUARTZO Mike Davis


"Cidade de Quartzo" é um livro exemplar do que seria uma micro-história. Aqui segue as lições dos Estudos Culturais e da Nova História, sem pudor em narrativizar a História (no sentido de dar mais atenção ao anedótico e às personas históricas e absolutamente nenhuma aos fenômenos maiores e às estatísticas). Até hoje não me decidi se aceito ou não o apelo ao anedótico. Em parte é exatamente isto, algo apelativo, e muitas vezes esconde superficialidade e falta de pensamento sob a rubrica de uma Novicultura. Por outro lado, há um vigor específico nas narrativas menores, nos "petits rècits" das pessoas comuns e personagens secundários. A questão é até que ponto isto é fiel a uma certa idéia de história, até que ponto isto facilita o entendimento de um certo período. Vale dizer, no caso de Davis, "Ecce Los Angeles?"

É exemplar também na medida em que demonstra um pensamento marxista/esquerdista típico de uma visão anglo-saxã. A impressão ao se ler é que para gente como Davis o auge da Revolução é um Estado de bem-estar social, mas nada além disso. Existe a habilidade da crítica, raramente radical, no entanto, ao menos não no sentido concreto do termo. Culpa-se o estabilishment pelas mazelas do mundo, mas raramente esta culpabilidade implica o direito a subversão e revolta. Este legalismo acanhado, caso não seja ultrapassado, eventualmente destrói a possibilidade de um pensamento revolucionário de fato.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

MANEIRISMO Arnold Hauser

O livro de Hauser é um exemplo (bem) acabado do que deve ser uma obra acadêmica. Temos a erudição e a discussão teórica, a referência às fontes primárias, o meio-termo entre o didatismo e a escrita que supõe um leitor educado, minimamente a par da matéria. Hauser propõe um maneirismo que possui caráter próprio, não simplesmente uma "queda" do classicismo renascentista, mas um estilo orgânico, com um desenvolvimento próprio. Não é possível pensar no período sem a referência ao humanismo e sem algum grau de dependência em relação aos mestres italianos, mas a virtude e talvez originalidade de Hauser está em entender que esta relação não é de subserviência, mas de crítica consciente em relação ao estilo. Num certo sentido, o maneirismo corresponderia a uma maturidade e excessiva racionalidade do humanismo, quando chegamos àquele ponto em que a experiência formal já não é tão necessária, ou seja, as técnicas de base todas já estão dominadas, e entramos na possibilidade do radicalmente novo.

Há uma questão que permeia todo o livro de Hauser, que se refere aos limites e exageros desta experimentação. Ou seja, até que ponto a criatividade tem o direito de transformar o visto, quais são os filhos desta transformação. O período do maneirismo corresponde à época mais poderosa das criações humanas: temos algum Michelangelo, El Greco, Hohlbein, Celini, Tintoretto, além de Cervantes, Shakespeare, os poetas metafísicos ingleses. Outros nomes dificilmente seriam considerados maneiristas fora da obra de Hauser, como Calderón, Maquiavel ou Montaigne. Mas não é a questão das listas que complica a discussão, mas sim o conceito de alienação, que Hauser identifica com a essência espiritual do Maneirismo. A alienação marxista, que começa a se instalar a partir das primeiras experiências com o monetarismo, a economia de escala e a racionalização e reificação das relações de trabalho, estaria por trás do abandono do otimismo e idealismo humanista em favor de uma visão mais cínica (mas muito menos dogmática) da vida, do mundo e dos homens. Sob esta chave Montaigne, Maquiavel e a parte mais satírica da obra de Calderón pertenceriam sem dúvida ao maneirismo. A questão é se é válido utilizar um conceito próprio de uma etapa muito mais avançada do capitalismo para dar conta de uma crise espiritual do século XVI. Hauser fala muito pouco das crises religiosas - que dão conta muito bem de Cellini, do último Michelangelo e de El Greco - e, embora através de Maquiavel, dê conta do surgimento do Estado moderno, é difícil atribuir o novo homem público e a nova subjetividade que estão em Montaigne ou Shakespeare a uma consciência prematura do processo de alienação. Por outro lado, o gênio de Cervantes parece ser consituído por este tipo de consciência.

Há um segundo aspecto do livro para além da discussão sobre história das idéias e que me interessa profundamente enquanto artista plástico que é a decrição cuidadosa e paciente das técnicas de representação do maneirismo. O alongamento da forma e o amor ao erotismo, seu sentido e força, ou seja, o que caracterizaria o "maniere" na história da arte são tratados através de exemplos, detidamente e comcuidado. Hauser não chega a falar de "gozo" no sentido psicanalítico, mas é este o sentido que aos poucos vai surgindo da plástica maneirista.

Após uma leitura do livro de Hauser no entanto, é este o sentido mais forte que surge, o Maneirismo como um momento em que a cultura Ocidental recupera a dimensão do gozo, do Grande Outro, do Sublime, com seus abismos e fogos. A teoria da tragédia de Nietzsche se encaixaria bem aqui, com o Maneirismo sendo um daqueles momentos de encontro entre apolíneo e dionisíaco, um período profundamente formal e auto-consciente de seus instrumentos, a ponto de se obrigar a abordar o abismo.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

O ARTÍFiCE Richard Sennett

É bastante impressionante a organização interna do livro, a maneira que Sennett vai e volta pelo tema coordenando, modulando, ritmando episódios para tratar de seu objeto. Há uma imaginação musical na ordem maior do livro. Em vários momentos encontramos Sennett organizando o texto de uma forma mais acadêmica, mais aristotélica, com a divisão em tópicos, enumerações, dignidades e hierarquias. Francamente não consegui definir se este é mais um elemento de ritmo, como um contra-ponto em relação à fluidez ensaística, ou uma desarmonia. Há determinada beleza matemática em uma organização textual aristotélica, além de aparentemente um compromisso ético com a clareza, e talvez isto compense a perda de beleza textual, mais propriamente estética, que um texto sem os limites hierárquicos teria. Por outro lado, há a impressão de uma certa timidez, como um salto final - e arriscado - sempre adiado em direção ao ensaístico e ao artesanato mais complexo do texto. Quanto ao ensaístico, o texto de Sennett é excepcionalmente leve para um autor com sua cultura, embora incomode um pouco a liberade ou sua absoluta falta de preconceito entre low e high brow. O modelo, no entanto, e isto é bem claro, é a tradição de Montaigne, o que justifica em absoluto estas invocações.

Quanto ao tema propriamente dito, ele me toca de forma pessoal e profunda, mas ainda assim me pergunto até que ponto é viável propor aquilo que Sennett chama de artífice - que não é exclusivamente o trabalhador manual especializado - como o modelo básico da dinâmica de conhecimento. O gande mérito do livro é se estruturar em torno da preocupação com uma ética do trabalho em suas dimensões comunitárias, subjetivas, epistemológicas, etc etc, e propor esta ética - esta consciência e prática - como a base da sociabilidade e um dos motores da história. É um livro não tanto sobre conhecimento, mas sobre saberes e sabedoria. Há 2 problemas importantes, centrais, e alguns marginais nessa tese. O primeiro problema importante diz respeito a sua insistência no trabalho enquanto rito social, tirando a solidão da equação. A condição moderna, tanto nossa sensibilidade quanto nossa relação com o conhecimento, é um diálogo solitário ou ao menos um diálogo com a solidão. Este é um fato central e prenhe de consequências, e deve ser abordado em um estudo sobre o trabalho, mesmo que a preocupação seja com o "bom trabalho". Sennett se refere a todo instante à dialética de detecção-solução e criação de problemas enquanto processo individual, mas não comenta a condição necessariamente alienada do homem moderno.

O segundo limite diz respeito a sua intencional (conforme ele deixa claro ao fim do livro) negação da criatividade como fator importante em uma dialética do trabalho, tanto a que vem da idéia romântica de gênio quanto aquela corporativo-capitalista que serve de base para a ideologia da competição e a meritocracia, e isso obscurece a compreensão da dialética do trabalho. A justifica é que o autor parte do princípio de que qualquer ofício é apreensível. Mas, eu diria que é esta criatividade um dos valores mais importantes para o distinto, o diferente, o peculiar, ou seja, toda a dimensão da identidade irredutível que foi justamente uma das grandes preocupações da filosofia do século XX. Preciso deixar claro que considero absolutamente necessário a valorização dos aspectos comunitários, impessoais a não-alienados tanto no trabalho quanto em qualquer outro campo. Mas quanto àquilo que é radicalmente único e incomunicável faz parte de nós tanto quanto o comunitário, e a criatividade é uma de suas divindades. Além disso, todo o campo da arte e do aurático está excluído se tiramos a criatividade da equação...

Uma última nota: Benjamin é citado muito pouco em um livro cujo tema dialoga constantemente com sua obra, pelo menos naquilo que se refere a interesses comuns. Sennett foi aluno de Arendt a vida inteira, o que torna a não-citação algo estranho.



quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

FIGURAS DA IMANÊNCIA François Julien

Há o desconforto constante de se estar diante de uma tradução impossível. Como dar conta do espírito totalizante do pensamento chinês, de seu impulso contante para dizer tudo - céu, terra, homem, príncipe, vagabundo...- em um só gesto? Julien dá conta muitíssimo bem de parte da tarefa, que é fornecer, através da explicação minuciosa de alguns hexagramas, um vislumbre das bases do pensamento chinês. Não podemos falar exatamente de uma visão de mundo, devido às mutações que o sentido do I Ching (e com ele, o pensamento chinês) sofre ao longo dos séculos e milênios, mas sim de uma espécie de base cultural, um ponto fixo de referência que serviu como farol para a cultura chinesa, talvez com a bíblia e os clássicos gresgos para o Ocidente. Há dois grandes méritos no livro. O primeiro é tentar dar conta da impossibilidade de tradução sem brevidade. Há alguma reflexão -não vocalizada, mas perceptível em termos de método, de escritura, de escolhas- sobre o como apresentar o monolito da cultura chinesa em termos que não impossibilitem que este texto permaneça chinês, mas que sejam minimamente compreensíveis para um ocidental. O que é feito então é "narrar" minuciosamente as linhas explicativas dos hexagramas, esclarecendo o que as alegorias chinesas significam, sua ancoragem no pensamento chinês. Haverá faltado talvez uma preocupação histórica com o desenvolvimento e a variação dos sentidos dos hexagramas, mas esse é um problema contornado por Julien através da eleição de um único sábio canônico como referência para seu comentário. Mesmo aí é possível perceber uma espécie de espelhamento em relação ao I Ching: Julien escolhe um ponto fixo de referência a partir do qual pode imprimir seu próprio comentário, mantendo um equilíbrio bastante produtivo entre unidade e variedade.

Esta dinâmica é a base de todo código verbal e linguagem, e que o I Ching dramatiza pois a projeta sobre a possibilidade de representação do próprio universo, humano e divino. Julien chama a atenção para isso a todo o momento, para o fato do livro ser essencialmente uma combinatória extremamente complexa que tem sua gênese em meros signos opositivos e binários, yang e yin, céu e terra, continuidade (_) e ruptura (--). Esta insistência, embora pareça esquecer que o I Ching é essencialmente um código, portanto criticável, permite-nos penetrar no espírito do livro, o do jogo universal, da própria existência como os lances de um jogo contínuo. É uma visão confortadora, que desarma a angústia da vida com a certeza de que há fluxo, ainda que traumático (estranho paradoxo, uma contradição substantiva) do viver, e que este fluxo tem um sentido ético, a que poderemos nos referir em seguida.

O segundo mérito é exatamente a dimensão imanente (e ética) da base da cultura chinesa. O campo e o horizonte da existência humana, e único lugar possível para o surgimento de eventos, é o universo ético da vida prática e pública. O completo desprezo do I Ching pela dimensão dos deuses, sua abdicação de utilizá-los como penhor moral dos atos humanos é o que estabelece a distinção essencial entre Ocidente e Oriente. Ainda que tenhamos passado por Iluminsmo e Revolução Científica, nossa mente, nossa forma mental terá sempre a metafísica como ponto de referência, o que significa que invariavelmente tentaremos entender nossa ação sobre o mundo e a vida através de categorias pouco imediatas, distantes demais da vivência concreta do trabalho, dos eventos, dos combates. O I Ching e, portanto, a cultura chinesa, concebe apenas o universo da vida concreta como digno de fornecer sentido á ação humana. Julien consegue apresentar muito bem esta distinção, assim como os conceitos que norteiam a formação do texto do I CHing: o yang e o ying, a concepção política hierárquica e profundamente conservadora, o entendimento de que a vida humana deve ser modelada em relação à natureza, e, finalmente, a delicada tensão entre a ruptura e a continuidade, a transformação, a sucessão de acontecimentos.

O livro das mutações é impressionante, e após a apresentação de Julien ele torna-se ao menos um pouco mais compreensível. Especialmente, como disse anteriormente, somos apresentados a uma maneira de conceber o cosmos em que a oposição entre homem e mundo não é uma ruptura a ser recuperada exclusivamente através de um gesto redentor ou iluminado; antes, essa oposição e seus derivados são constantemente apagados e renovados. Tanto redenção quanto queda ocorrem continuamente. Se a ação humana deve ser ética, isso se dá não devido a um decreto divino, mas porque há a compreensão de que o que confere sentido a essa ação é algo muito próximo ao prazer estético, a possibilidade de troná-la parte de uma narrativa coletiva, universal, política que o I Ching tenta estabelecer e teorizar.

A grande questão é que necessariamente esta paixão pelo imanente evita revoluções e inovações legítimas. Apenas por um exagero geográfico falamos em Ocidente, e mesmo neste caso somos obrigados a apagar e calar uma série de diferenças que inúmeras revoluções e traumas causaram a nossa cultura. Não é o caso chinês, que tem uma história contínua de 5000 anos. Esta continuidade é poderosíssima, e benigna na medida em que não condena seus filhos à infelicidade que fatalmente um ocidental sentirá: as metas desse são sempre impossíveis porque a Grande Lei que as legou no fundo não existe. Este oco constituinte é o que nos torna tão perversos e aflitos, mas é também que exige a inovação contínua, como um tubarão que não possa dormir. Um chinês não viverá talvez essa infelicidade, mas me pergunto se a existência em um universo fechado, em que a lei, ainda que dada pela experiência, é irremovível, não é também um tipo de angústia.

domingo, 29 de novembro de 2009

O CICLO DAS ERAS Eric Hobsbawn

Deve-se desconfiar de livros de história. Seu alcance é sempre menor do que deveria ser, e, no entanto, sempre excessivo. Cada afirmação de um historiador corre sempre o risco de ser um equívoco grotesco, e não por culpa dos próprios historiadores, mas da matéria sutil com que lidam. A história é a disciplina básica, aquela que gera e sustenta todas as humanidades, por fim aquela que tenta dar conta do fulcro da aventura humana, de sua experiência, sentido, processo, devir, motivação...

A tarefa do grande historiador é disfarçar esta complexidade e a necessária fragilidade de qualquer um diante da tarefa em uma narrativa que aparente simplicidade, que possua clareza. Desde os grandes gregos esta tem sido a honra do historiador, e Hobsbawn se encaixa nesta fileira sem muitos problemas.

Sua proposta básica é dar conta da História Universal desde a Revolução francesa até a Queda do Muro. A quantidade de conhecimentos de outros campos que é necessária para apenas arranhar o objeto é vertiginosa, e, ainda assim, após ser vertida em sua prosa dá a impressão de ser coisa simples. O que permite esta fluência talvez seja um senso comum que o impede de se aprofundar em cada detalhe (o que multiplicaria ao infinito as cerca de 2000 páginas das Eras) e ao mesmo tempo estabelecer linhas de força para cada capítulo e para o período inteiro que sempre fazem-no retornar ao fio da narrativa. A primeira linha, a identificação da História com o progresso técnico e as relações de trabalho, é facilmente explicada por sua filiaçaõ ao marxismo. Os livros das Eras são História Universal, mas isso significa aqui História da Economia, com ênfase especial à História da técnica e da relação do trabalhador com o trabalho (mais do que com o Capital). A segunda linha de força pode ser situada na tentativa de dar conta de toda discussão pós-colonialista, com o interesse pela relação entre Europa e o resto do mundo. Hobsabawn não chega a militar pelas teses da teoria pós-colonial, mas é bastante clara sua compreensão de que o processo político em nível mundial (e mesmo intra-Europa) se dá em ambiente imperialista e colonial. Alguns capítulos, como a descrição da tentativa de modernização da China, ilustram bem este aspecto. O que o afasta definitivamente da teoria pós-colonial é uma certa neutralidade diante do imperialismo. O Império Britânico nunca é diabólico, por exemplo, a não ser talvez na descrição do processo de desindustrialização da Índia e nas grandes fomes. O não-julgamento e a não-moralização da dinâmica colonial fazem com que a balança penda mais para o lado do marxismo do que para do pós-colonialismo. Pessoalmente acredito que a narrativa ganhe bastante em termos estilísticos dessa maneira, mas há toda dimensão ética que permitiu que o pós-colonialismo ganhasse força nas últimas décadas e que não é questão menor: não há como deixar de pensar ou de discutir se o Imperialismo é uma perversão; o problema é como fazer isso de uma maneira que não pareça infantil.

A próxima linha de força se mostra presente com mais intensidade no último (e maior) livro da série, a Era dos Extremos. Ali, Hobsbawn se aproxima de algo muito próximo a uma narrativa literária, e francamente não poderia definir muito bem o que quero dizer. Mas o fato é que o narrado ganha vida e o texto se torna francamente ensaístico (montagniano, queremos dizer) em alguns momentos. Talvez isto seja possível pelo fato de Hobsbawn ter vivenciado a história do século XX, talvez seja devido ao último livro ser a culminância de uma evolução estilística que se iniciou anos e anos atrás quando decidiu escrever a série. O fato é que a narrativa histórica ganha a dimensão de obra-prima em a Era dos Extremos, a ponto de a referência possível ser as Histórias de Tucídides e dos outros clássicos. Ali há julgamento, mas também empatia e melancolia, desprezo e pasmo, ironia e horror. Utilizar-se destes sentidos sem se esquecer de estatísticas e de argumentação objetiva é algo que provoca, justamente, espanto.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

O INSTANTE CONTÍNUO Geoff Dyer

É uma boa reflexão sobre a tradição, seu sentido e construção. É obviamente uma história sobre a fotografia norte-americana, o que não é pouco considerando a riqueza de seu acervo, mas é limitada em vários sentidos. O principal limite é a suposição de que é possível narrar a construção desta tradição de forma endógena, ou seja, narrar a construção da tradição fotográfica americana através apenas de fotógrafos americanos. Mesmo Cartier-Bresson aparece marginalmente, e há um grande problema teórico aí.

Este problema à parte, é fascinante a maneira que Dyer trata a questão da tradição, com a metáfora do instante contínuo ele consegue entrelaçar várias dimensões bastante complicadas e sutis para construir um objeto complexo, um feito impressionante. O estilo do livro é o meio-jornalismo/meio-literário do ensaismo público anglo-saxão, o que francamente não é um problema para mim. Talvez isso limite um pouco o alcance da teoria que usa, especialmente Benjamin e Sontag são tratados de uma forma um pouco superficial, e as anedotas biográficas são apelativas às vezes, apesar de tornarem o texto mais saboroso. Sinto-me pessoalmente grato pela apresentação a Charis Wilson, a musa de Edward Weston. Dyer consegue reconstituir a paixão pelo corpo e pela mulher, o que contagia e nos leva à paixão também.

É ótima a idéia da tradição como um instante contínuo, como uma narrativa em que o tema ou leit-motiv (no caso alguma imagem aurática registrada pela câmera) vai e volta dentro da narrativa, modificando-se com certa autonomia dentro da obra de cada autor. Esta é uma das melhores maneiras de tratar aquilo que seria o objeto estético. E se de fato Dyer parece ser um pouco superficial ao tratar de Benjamin, seu livro inteiro é uma releitura, sutil, profunda e multi-dimensional do que seja o estético, talvez não em Benjamin exclusivamente, mas passando por ele necessariamente.

Dyer parece indicar que os temas, como o cego, a nudez feminina, o homem de sobretudo, a rua da grande cidade, as janelas etc etc são modificados e trabalhados em cada geração não exclusivamente por um mecanismo de influência, mas sim por sua capacidade de se impor dentro da própria tradição: eis o objeto aurático. A insistência de Dyer é que a tradição é uma grande narrativa. Ele não passa pela questão do "quem narra", o que é ótimo, essa é uma questão falsa, mas parece implícito que estamos diante de uma narrativa com certos momentos ou inflexões que surgem como tema de uma maneira semi-arbitária. O que faz com que a imagem do cego torne-se icônica? Esta é uma questão explorada, mas nunca respondida, e há aí alguma maestria, porque é esta não-resposta que preserva o processo. Não importa o porquê, importa sim que geração após geração de fotógrafos americanos retornará ao tema do cego, recontará a história modificando um pouco sua textura. Dar mais importância ao processo, entender que em termos estéticos e mesmo artesanais o "porquê" se dilui e é sobreposto pelo "como" e que a consciência real da arte não diz respeito a uma pretensa origem, mas sim ao próprio processo vivo, este é quase um princípio de ofício e uma boa introdução ao mistério da obra.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

VENENO REMÉDIO José Miguel Wisnik

É admirável ver um fenômeno como o futebol ser tratado com a medida exata, de forma complexa e bela como no livro de Wisnik. Francamente não sei dizer até que ponto concordo com a tese central, de que o jogo de bola é um modelo de conhecimento para a identidade nacional. Mas a imagem do veneno-remédio me parece justa para se referir ao papel que o jogo tem entre nós.

O pharmakon, a substância que tanto pode curar quanto adoecer, encaixa como uma luva. De fato o jogo possui uma dimensão libertária, de novo mundo prometido pelo pacto identitário brasileiro, e talvez o grande mérito do livro de Wisnik seja a apresentação e reflexão sobre este nível de sentido do jogo. E não me parece condescendente ou cega sua descrição da evolução do jogo, sua inserção nas diferentes fases do capitalismo e da espetacularização. Talvez a falha esteja não chegar à conclusão de que o jogo (enquanto jogo, ao menos, enquanto dimensão de liberdade e não simplesmente um acontecimento espetacular) está morrendo ou já morto exatamente devido à intensidade e conforto desta inserção. Mas se considerarmos a grande virtude do livro, que é dar o alcance correto à importância que o futebol tem entre nós e tratar sua estrutura e "narrativa" da mesma maneira que uma obra estética seria tratada, ou seja, se considerarmos a profundidade de reflexão que Wisnik concede ao jogo, seria realmente injusto pedir que seu livro concluísse que o jogo está morto.

Mas talvez não seja propriamente do futebol que o livro trate, mas sim da reafirmação da dialética da malandragem de Cândido, de uma brasilidade essencialmente subversiva, criativa e libertária. Tenho sempre a tendência de encarar as construções sobre a nacionalidade como falseamentos bem ou mal intencionados de questões mais centrais e, na verdade, universais. As excepcionalidades, seja a dos judeus, a dos persas ou a dos americanos, costumam justificar mais barbaridades que qualquer outra coisa. E no entanto é quase inevitável se perguntar se em um impossível fim da história ou uma Paz Universal em que cada civilização (caso seja possível mesmo falar em civilizações) seria instada a apresentar sua colaboração à História, a constribuição brasileira não seria exatamente uma certa idéia de liberdade, uma certa medida da alegria enquanto destino humano?


segunda-feira, 16 de novembro de 2009

MULTIDÃO Toni Negri e Michael Hardt

A continuação de "Império", este livro de Hardt/Negri teve menos impacto, embora não o considere menos importante. Não encontraremos em "Multidão" os malabarismos teóricos de "Império", nem tampouco seus momentos brilhantes. É um texto bem mais direto, talvez de quem já fale com autoridade conquistada e não precise se esforçar tanto para ganhar os ouvidos da platéia.

Talvez pudéssemos dividir o livro em 3 temas. O primeiro se refere à natureza política da multidão, conceito que apresentam, o "sujeito histórico" por excelência do nosso tempo (apesar do termo sujeito histórico não ser empregado pela dupla). Há uma certa confusão conceitual por conta da oposição simultânea da multidão ao povo e à massa, por um lado, e ao conceito de classe, por outro, o que é talvez uma falta de cuidado topológico, e o simples fato do livro suscitar esse tipo de discussão é indício inconfundível de que, apesar de na superfície termos um texto que refere a tradição de discussão dos intelectuais públicos, estamos diante de uma obra acadêmica, com suas cifras e jargões. De qualquer maneira, ao contrário da massa e do povo, conceitos unitários, e da classe, que exige uma visão de trabalho e de identidade já moribunda, a multidão é finalmente o aglomerado bio-político (e valeria a pena fazer uma crítica à maneira que os autores usam o termo). Este aglomerado tem a capacidade de agir em conjunto sem apagar as diferenças e tensões. Isto é proposto como uma solução para o sujeito político de hoje, mas há uma certa leveza aí (no mau sentido), irremissível. Creio que os autores acertam ao exigir uma atualização do sentido de conceitos como classe, oprimido, explorado, etc frente ao nosso tempo. Obviamente, propor a manutenção da diferença é necessário e se encaixa no grande projeto do pensamento moderno, mas qualquer agente político precisa de algum tipo de identidade. Então, a defesa da diferença como categoria política de base é necessária, a questão é que isto não pode ser feito rapidamente e sem pensar muito, muito bem, e é exatamente o que Hardt/Negri fazem.

Tanto no conceito de multidão quanto nas outras discussões do livro é necessário a idéia subjacente de estrutura em rede (algo já explorado em "Império"), apresentada como uma espécie de visão de mundo, ou maneira típica de pensar do alto-capitalismo em que vivemos. A estrutura em rede permeia tudo, da forma de guerrear dos grandes Estados às insurgências, das corporações aos movimentos anti-globalização, mais a sensibilidade estética, a maneira de organizar o trabalho, etc, etc. Outra idéia bastante rica é a compreensão de que o conceito de trabalho passou por uma mutação, com o surgimento da produção imaterial(muitas vezes coletiva e não monetarizada) como uma força histórica a ser considerada.

Além da multidão, os outros 2 temas que Hardt/Negri trabalham é a natureza da guerra e da democracia na atualidade. Aqui temos essencialmente um resumo e discussão ligeira de todas as idéias que vêm alimentando a esquerda na última década, especialmente a de Estado de Sítio que Agamben popularizou com "Homo Sacer". De novo, não há propriamente um problema de conteúdo, mas sim de leveza. Propôr uma nova Democracia fundada na "multidão" mundial pós-moderna é mais ou menos uma conclusão necessária das discussões atuais no campo anti-capitalista. A grande questão se refere ao como fundar esta nova soberania. A todo momento os autores deixam claro que seu livro n ão é um "que fazer?", mas é exatamente isto que falta para que possa existir de fato um campo de oposição real.

Outro problema é a ambigüidade dos autores em relação à violência política. Terroristas e grupos armados são utilizados a todo instante como exemplo de violência moderna, com seu funcionamente me rede a anti-unitário. No entanto, não conseguem ou não querem assumir a responsabilidade de fazer o transporte desta violência para o campo revolucionário. É claro que este tipo de proposição é perigoso, mas a verdade é que é impossível pensar uma subversão efetiva sem o horizonte da violência em algum momento.

Esta é uma discussão complicada até porque, como os autores apontam muito bem, o tipo de arma a ser utilizada hoje em dia será necessariamente distinto daquele do século XX, como o partido revolucionário ou a guerrilha. Mas é uma discussão necesária e, de novo, o livro não consegue defender ou apontar um modelo funcional de violência subversiva. Problematizar é obviamente importante, e isto é bem feito, mas soluções precisam também ser propostas, mesmo que isto leve a equívocos e a derrotas, e isto não é feito em absoluto. É nessas horas que um Debord faz falta...

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

ANGELS IN AMERICA, Tony Kushner

Há alguns anos, um dramaturgo americano, Tony Kushner, foi responsável por uma pequena (muito pequena) revolução no teatro ao escrever seu “Angels in America”, drama em duas partes que misturava cultura gay, política da era Reagan e a grande ironia metafísica de anjos desesperados não porque deus está morto, mas porque se ausentou. É bastante interessante encontrar uma peça que dialogue de maneira tão constante e consistente com Walter Benjamin. A questão é que, a começar pelo anjo meio irônico que pede a paralisação da história (em uma referência bastante direta ao “Angelus Novus” de Benjamin), estamos diante de um objeto estético que muito facilmente entra na farsa. Creio que o problema quase incontornável de Kushner esteja em como utilizar uma matriz tão profundamente revolucionária quanto a da obra de Benjamin – que tem um compromisso radical com uma revolução socialista- para falar politicamente do “esquerdismo” ou do liberalismo americano, muito mais complacente, um degrau abaixo da mais branda social-democracia.

Vou me limitar ao comentário político porque de resto a peça é quase perfeita: da aposta nos efeitos especiais cênicos, aos diálogos, à urdidura da ação. Há muito o que dizer, enfim, mas o que mais chama a atenção é a espécie de “idéia fora do lugar” na utilização da obra de Benjamin.

Em primeiro lugar são duas peças distintas, apesar de uma ser continuação da outra. A primeira parte, “Millenium Aproaches”, é um drama sobre solidão e fracasso humano, sobre uma praga, a AIDS, mentiras e covardia. Um resumo da era Reagan segundo a visão de Kushner. A segunda parte, “Perestroyka”, é uma comédia. Kushner chama a atenção no aviso aos encenadores que não chega a ser uma farsa, mas há aí certo engano. Toda a profunda dor humana da primeira parte, que teria um final melhor trágico – e então tocando possivelmente o pensamento histórico de Benjamin-, é diluída em uma série de soluções ex machina. Talvez evitar a grandiloqüência da morte e da tragédia e optar pela esperança, pelo “mais vida” da bênção que é o cerne da segunda parte, seja uma solução madura e mesmo politicamente mais inteligente (pensando aqui a peça como também documento político, como afirmação de uma posição ética), mas que acaba descriando a trama do abismo histórico projetado e pensado por Benjamin. Neste o pesadelo da história é uma esfinge a ser desafiada de maneira franca antes da liberação e ressurreição do humano.

Na segunda parte da peça este abismo é evitado. É interessante pensar que o céu aonde o protagonista vai para dialogar com os anjos perdidos (representado como as ruínas da cidade de São Francisco, uma das mecas da cultura gay e subversiva de um modo geral na América) ainda é o repositório da experiência humana: apesar de tudo ainda há simpatia pelo homem, pelo caminho luciferino e mutante do homem. Mas é isto que Benjamin sonha como o momento messiânico nas teses sobre a história? A chegada do Messias não é propriamente o momento em que “simpatia” é possível, mas sim aquele mais difícil em que ela não é mais necessária, nem a fé, pois o conhecimento e a memória já não são destruídos e cada ruína fala.

Este pequeno deslize meio sentimental diz muito sobre a dificuldade americana de localizar a própria experiência coletiva em relação à experiência mais radical, aos sonhos mais violentos de liberdade que outras partes do mundo alimentaram. Imaginar que o pináculo da história, que o progresso, virá da democracia burguesa que a América do Norte alimentou e desenvolveu em seus momentos mais generosos é quase má-fé. É especialmente desligar a experiência histórica de suas raízes mais poderosas, os ciclos de destruição e ressurreição, de sacrifício trágico e luta constante contra o caos e o absurdo – o que é prometido na primeira parte mas não cumprido na segunda. “Perestroyka” é então uma peça que fracassa num certo sentido, como a segunda parte do “Fausto” fracassa por ter uma incontornável paixão pela esperança descarnada, burguesa, pacífica. A questão é que não há uma boa teoria para avaliar artisticamente esta opção pela vida pacificada. O trágico será sempre mais nobre que a comédia, em parte porque, ao contrário do que possa parecer, é ele que consegue tocar o cerne da esperança, que é o desespero. (originalmente publicado na revista pequena morte: pequenamorte.com )


quarta-feira, 11 de novembro de 2009

A BRIGHT ROOM CALLED DAY Tony kushner

A pergunta que se faz ao fim da narrativa é se a amizade pode ser de fato uma categoria política: como se o mais terrível efeito do nazismo fosse a dissolução de um grupo de amigos, seu enfraquecimento, exílio e anulação do futuro em comum. É uma boa metáfora para a esterilidade que os momentos de dureza histórica trazem, e pensamos imediatamente no que a ditadura brasileira fez com a geração de Torquato Neto e Gullar, ou o que o franquismo fez com o modrnismo espanhol.

O círculo de amigos como uma imagem da célula social mínima, livre e afetuosa, ao contrário das organizações e partidos, sua ruptura, portanto, como o grande desastre humano. O "ovo da serpente" de Bergman tratou de um tema próximo, e a conclusão diante do filme é que o grande terror não é a parcela dantesca e titânica da guerra, dos campos, das ruínas, mas sim algo mais tênue, o próprio humano, como substantivo. A perda do humano, da possibilidade da humanidade, eis o que está quase presente na peça de Kushner. Mas como em "Angels in America" há a recusa de ir até o fundo do abismo, e fica alguma esperança na atriz que decide ficar para trás, nos "buracos na fronteira" de onde se pode escapar da Alemanha nazista.

Nesta perspectiva, a de que o grande desastre é a esterilização de uma humanidade saudável, não desesperada, não insana, a figura de baz ganha uma dimensão heróica. Diante do acidente que o põe dentro de uma sala de cinema com Htler e uma arma carregada, embora compreenda perfeitamente toda perversidade e aberrância (?) do homenzinho, prefere não matá-lo. "Porque logo depois eu seria morto, e eu quero viver". Esta escolha pela própria vida, mais do que um gesto egoísta - e, de novo, Baz compreende o mal que é Hitler - é a projeção da peça em uma dimensão ética, como uma reflexão moral bastante profunda sobre o estofo de homens bons vivendo em tempos difíceis.

O paralelo com a era Reagan através de Zillah, especialmente seu discurso provocativo (e genial em termos de argumentação - mais um indício que estamos diante de uma fábula moral), comparando seu tempo ao nazismo remete diretamente à natureza do mal. Agora, em retrospecto, entendemos o exagero da comparação - aa era Reagan não gerou milhões de mortos, não diretamente, pelo menos - mas o argumento de Zillah, de que caso Pat Buchanan vivesse na Alemanha de 30 é bem provável que frequentasse as festas de Himmler e Göebel, faz pensar até que ponto a distinção entre potência e ato é realmente válida. O mal potencial é ainda assim mal, ou o mal é necessariamente algo que nasce da contingência, e ultrapassar o limite da moralidade é um gesto determinado pelas ciscunstâncias?

Gottfried Sweets, o diabo na peça, é uma alegoria bastante original. Um diabo cansado como um velho burocrata, mas que mantém o poder de desrtruir e de devastar. Resume em uma imagem a surpresa de Hannah Arendt diante da banalidade de Eichmann. Lembro de referência a uam conversa de Foucault (publicada em um MAIS há alguns meses ou anos) em que ele diz que coragem é coragem física, o gesto corporal de dizer não e fechar a boca; o resto serão talvez astúcias e manobras,, e carecem da dimensão de evento que a coragem física possui. Pois bem, este diabo alquebrado, como Eichmann,como a maioria da burocracia nazista, são o reverso desta coragem a que Foucault se refere. Há algo de maligno, de anti-humano, em retirar da força esta dimensão de evento, de momento de decisão em que potência e ato se unem. Matar milhares com o apertar de um botão, ou cometer atrocidades assinando documentos. É este, talvez, o sign ificado de vender a alma, um dos sentidos mais fortes da palavra "desumanização". O problema é sempre como recuperar esta alma de forma coletiva - porque em um nível pessoal haverá sempre as paixões e afetos, ou ao menos o sexo, como instâncias de redenção, embora mesmo isto possa ser destruído e esvaziado. Mas, coletivamente, não há a possibilidade de parar de apertar botões, nem de dar peso e substância a estes pequenos gestos perversos.