terça-feira, 30 de setembro de 2008

O IDIOTA, de Dostoiévski, edição da Nova Aguillar

Um messias pateta? Mishikin é a figura ingênua que Bakhtin via como o personagem-padrão do romance, aquele cujo olhar vai dar a medida da desordem do mundo. Mas se os meninos de Dickens ou o Quixote são personagens sem malícia, em Mishikin há um certo peso negativo, algo mais ( e mais sério, e com mais consequências) que o jogo irônico que a narrativa romanesca tem como seu habitus. Talvez fosse excessivo se referir a ele como personagem perverso, sem sentido psicanalítico aqui, mas há o tangenciar disso.

Mishikin não é o ingênuoi típico em parte porque sua santidade é para ser levada a sério. E a sombra de exigência que ela projeta sobre o mundo e os outros é uma condenação, ainda que involuntária. Se seu antípoda é Rogojn, este é infinitamente mais humano que Mishikin: odeia quando deve odiar, ama com corpo e com a impossível, infinita vontade de anular o outro, ao contrário de Mishikin, que não odeia, que ama apenas com piedade. Para o primeiro a santidade do último é vista não com a complçacência dos outros personagens diante de um idiota, mas com o resentimento de uma criatura baixa para com um anjo, e a consciência dolorida de que a sabedoria angelical não é de maneira nenhuma uma bênção para um mundo louco, antes uma forma de juízo. A relação entre os dois é a do homem revoltado para com Deus-Pai, como quem entende que o perdão é uma espécie de julgamento. ntes Mishikin odiasse e lutasse contras as ofensas que sofre, mas seu cionstante dar a outra face acaba sendo uma forma de agressão, algo arrogante e temível, aos olhos de Rogojn, a marca de um anjo e da redenção para Natássia.

E mesmo neste caso há alguma crueldade: sua recusa a este perdão e sua constante atração e repulsa em reelação a Mishikin talvez sejam em algum nível a resposta do acusado contra o acusador. Algo como o reconhecimento de que o perdão que Mishikin oferece só seria real (e não uma espécie de falsidade metafísica) em um outro mundo em que o sofrimento e o pecado não fossem imperativos, mas um ato de arbítrio, o que Natassia sabe muito bem que não é verdade. Esta creuldade santa estaria então em oferecer perdão, mas com a condição de que o perdoado reconhecesse sua culpa. Mas, se a culpa no fundo é da vida, é do mundo, da natureza humana, que culpa existe de fato? Neste caso o grande pecador é o santo, aquele que aposta que o reino de deus pode vir. O problema é que o reino de deus, como num dos pesadelos que os gnósticos sabiam imaginar, já veio e é terrível, e isto Rogojn e Natassia mostram a cada instante, e por isso sua relação é mais tocante e comovente, são dois desabrigados que se protegem. Que direito a voz trem um santo neste reino decaído?

Se a principio Mishikin é a antecipação meio farsesca da fábula do Grande Inquisidor, dos Irmãos Karamázov, ele é também uma mistura de Cristo e Inquisidor: o bem que procura desesperadamente fazer, sua necessidade de piedade e de perdoar acabam provocando desastres. Há, sim, algo de farsesco nisso, de "idiota" como no sentido que os gregos usavam, de pessoa egoísta, alienada, voltada apenas para si. O bem que Mishikin procura, assim como a redenção meio ridícula que oferece, são seu próprio bem, sua própria redenção (sabe-se lá o que uma pessoa que renunciou à vida teria a redimir...), ainda que a imagem seja sempre a da ação desinteressada. Da mesma forma que há o mal que acaba produzindo o bem, lembrando a senteça de Mefistófoles (e de Hegel também?), Mishikin faz parte dquele bem que acaba produzindo o mal, e perde não apenas a própria vioda por delicadeza, mas a vida de mais um punhado de pessoas. Sua atitude e candura ferem àqueles que precisariam de algom mais que a não-ação, a não-ousadia.

Seu retorno à idiotice no fim da narrativa após o assassinato/suicídio de Natássia é uma forma de martírio, mas também uma punição (talvez auto-irônica) de Dostoiévski contra este messais inútil, não, como no caso da fábula do inquisidor, por impedir o funcionamento de um maquinário, mas inútil porque a humanidade que ele veio redimir não precisava do seu perdão. Talvez precisasse do seu poder ou de sua simpatia, mas uma das constantes na obra de Dostoiévski, bastante impressionante em um homem religioso e uma das bases der sua genialidade, é que no mundo sub-lunar não acontecem milagres.