domingo, 29 de novembro de 2009

O CICLO DAS ERAS Eric Hobsbawn

Deve-se desconfiar de livros de história. Seu alcance é sempre menor do que deveria ser, e, no entanto, sempre excessivo. Cada afirmação de um historiador corre sempre o risco de ser um equívoco grotesco, e não por culpa dos próprios historiadores, mas da matéria sutil com que lidam. A história é a disciplina básica, aquela que gera e sustenta todas as humanidades, por fim aquela que tenta dar conta do fulcro da aventura humana, de sua experiência, sentido, processo, devir, motivação...

A tarefa do grande historiador é disfarçar esta complexidade e a necessária fragilidade de qualquer um diante da tarefa em uma narrativa que aparente simplicidade, que possua clareza. Desde os grandes gregos esta tem sido a honra do historiador, e Hobsbawn se encaixa nesta fileira sem muitos problemas.

Sua proposta básica é dar conta da História Universal desde a Revolução francesa até a Queda do Muro. A quantidade de conhecimentos de outros campos que é necessária para apenas arranhar o objeto é vertiginosa, e, ainda assim, após ser vertida em sua prosa dá a impressão de ser coisa simples. O que permite esta fluência talvez seja um senso comum que o impede de se aprofundar em cada detalhe (o que multiplicaria ao infinito as cerca de 2000 páginas das Eras) e ao mesmo tempo estabelecer linhas de força para cada capítulo e para o período inteiro que sempre fazem-no retornar ao fio da narrativa. A primeira linha, a identificação da História com o progresso técnico e as relações de trabalho, é facilmente explicada por sua filiaçaõ ao marxismo. Os livros das Eras são História Universal, mas isso significa aqui História da Economia, com ênfase especial à História da técnica e da relação do trabalhador com o trabalho (mais do que com o Capital). A segunda linha de força pode ser situada na tentativa de dar conta de toda discussão pós-colonialista, com o interesse pela relação entre Europa e o resto do mundo. Hobsabawn não chega a militar pelas teses da teoria pós-colonial, mas é bastante clara sua compreensão de que o processo político em nível mundial (e mesmo intra-Europa) se dá em ambiente imperialista e colonial. Alguns capítulos, como a descrição da tentativa de modernização da China, ilustram bem este aspecto. O que o afasta definitivamente da teoria pós-colonial é uma certa neutralidade diante do imperialismo. O Império Britânico nunca é diabólico, por exemplo, a não ser talvez na descrição do processo de desindustrialização da Índia e nas grandes fomes. O não-julgamento e a não-moralização da dinâmica colonial fazem com que a balança penda mais para o lado do marxismo do que para do pós-colonialismo. Pessoalmente acredito que a narrativa ganhe bastante em termos estilísticos dessa maneira, mas há toda dimensão ética que permitiu que o pós-colonialismo ganhasse força nas últimas décadas e que não é questão menor: não há como deixar de pensar ou de discutir se o Imperialismo é uma perversão; o problema é como fazer isso de uma maneira que não pareça infantil.

A próxima linha de força se mostra presente com mais intensidade no último (e maior) livro da série, a Era dos Extremos. Ali, Hobsbawn se aproxima de algo muito próximo a uma narrativa literária, e francamente não poderia definir muito bem o que quero dizer. Mas o fato é que o narrado ganha vida e o texto se torna francamente ensaístico (montagniano, queremos dizer) em alguns momentos. Talvez isto seja possível pelo fato de Hobsbawn ter vivenciado a história do século XX, talvez seja devido ao último livro ser a culminância de uma evolução estilística que se iniciou anos e anos atrás quando decidiu escrever a série. O fato é que a narrativa histórica ganha a dimensão de obra-prima em a Era dos Extremos, a ponto de a referência possível ser as Histórias de Tucídides e dos outros clássicos. Ali há julgamento, mas também empatia e melancolia, desprezo e pasmo, ironia e horror. Utilizar-se destes sentidos sem se esquecer de estatísticas e de argumentação objetiva é algo que provoca, justamente, espanto.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

O INSTANTE CONTÍNUO Geoff Dyer

É uma boa reflexão sobre a tradição, seu sentido e construção. É obviamente uma história sobre a fotografia norte-americana, o que não é pouco considerando a riqueza de seu acervo, mas é limitada em vários sentidos. O principal limite é a suposição de que é possível narrar a construção desta tradição de forma endógena, ou seja, narrar a construção da tradição fotográfica americana através apenas de fotógrafos americanos. Mesmo Cartier-Bresson aparece marginalmente, e há um grande problema teórico aí.

Este problema à parte, é fascinante a maneira que Dyer trata a questão da tradição, com a metáfora do instante contínuo ele consegue entrelaçar várias dimensões bastante complicadas e sutis para construir um objeto complexo, um feito impressionante. O estilo do livro é o meio-jornalismo/meio-literário do ensaismo público anglo-saxão, o que francamente não é um problema para mim. Talvez isso limite um pouco o alcance da teoria que usa, especialmente Benjamin e Sontag são tratados de uma forma um pouco superficial, e as anedotas biográficas são apelativas às vezes, apesar de tornarem o texto mais saboroso. Sinto-me pessoalmente grato pela apresentação a Charis Wilson, a musa de Edward Weston. Dyer consegue reconstituir a paixão pelo corpo e pela mulher, o que contagia e nos leva à paixão também.

É ótima a idéia da tradição como um instante contínuo, como uma narrativa em que o tema ou leit-motiv (no caso alguma imagem aurática registrada pela câmera) vai e volta dentro da narrativa, modificando-se com certa autonomia dentro da obra de cada autor. Esta é uma das melhores maneiras de tratar aquilo que seria o objeto estético. E se de fato Dyer parece ser um pouco superficial ao tratar de Benjamin, seu livro inteiro é uma releitura, sutil, profunda e multi-dimensional do que seja o estético, talvez não em Benjamin exclusivamente, mas passando por ele necessariamente.

Dyer parece indicar que os temas, como o cego, a nudez feminina, o homem de sobretudo, a rua da grande cidade, as janelas etc etc são modificados e trabalhados em cada geração não exclusivamente por um mecanismo de influência, mas sim por sua capacidade de se impor dentro da própria tradição: eis o objeto aurático. A insistência de Dyer é que a tradição é uma grande narrativa. Ele não passa pela questão do "quem narra", o que é ótimo, essa é uma questão falsa, mas parece implícito que estamos diante de uma narrativa com certos momentos ou inflexões que surgem como tema de uma maneira semi-arbitária. O que faz com que a imagem do cego torne-se icônica? Esta é uma questão explorada, mas nunca respondida, e há aí alguma maestria, porque é esta não-resposta que preserva o processo. Não importa o porquê, importa sim que geração após geração de fotógrafos americanos retornará ao tema do cego, recontará a história modificando um pouco sua textura. Dar mais importância ao processo, entender que em termos estéticos e mesmo artesanais o "porquê" se dilui e é sobreposto pelo "como" e que a consciência real da arte não diz respeito a uma pretensa origem, mas sim ao próprio processo vivo, este é quase um princípio de ofício e uma boa introdução ao mistério da obra.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

VENENO REMÉDIO José Miguel Wisnik

É admirável ver um fenômeno como o futebol ser tratado com a medida exata, de forma complexa e bela como no livro de Wisnik. Francamente não sei dizer até que ponto concordo com a tese central, de que o jogo de bola é um modelo de conhecimento para a identidade nacional. Mas a imagem do veneno-remédio me parece justa para se referir ao papel que o jogo tem entre nós.

O pharmakon, a substância que tanto pode curar quanto adoecer, encaixa como uma luva. De fato o jogo possui uma dimensão libertária, de novo mundo prometido pelo pacto identitário brasileiro, e talvez o grande mérito do livro de Wisnik seja a apresentação e reflexão sobre este nível de sentido do jogo. E não me parece condescendente ou cega sua descrição da evolução do jogo, sua inserção nas diferentes fases do capitalismo e da espetacularização. Talvez a falha esteja não chegar à conclusão de que o jogo (enquanto jogo, ao menos, enquanto dimensão de liberdade e não simplesmente um acontecimento espetacular) está morrendo ou já morto exatamente devido à intensidade e conforto desta inserção. Mas se considerarmos a grande virtude do livro, que é dar o alcance correto à importância que o futebol tem entre nós e tratar sua estrutura e "narrativa" da mesma maneira que uma obra estética seria tratada, ou seja, se considerarmos a profundidade de reflexão que Wisnik concede ao jogo, seria realmente injusto pedir que seu livro concluísse que o jogo está morto.

Mas talvez não seja propriamente do futebol que o livro trate, mas sim da reafirmação da dialética da malandragem de Cândido, de uma brasilidade essencialmente subversiva, criativa e libertária. Tenho sempre a tendência de encarar as construções sobre a nacionalidade como falseamentos bem ou mal intencionados de questões mais centrais e, na verdade, universais. As excepcionalidades, seja a dos judeus, a dos persas ou a dos americanos, costumam justificar mais barbaridades que qualquer outra coisa. E no entanto é quase inevitável se perguntar se em um impossível fim da história ou uma Paz Universal em que cada civilização (caso seja possível mesmo falar em civilizações) seria instada a apresentar sua colaboração à História, a constribuição brasileira não seria exatamente uma certa idéia de liberdade, uma certa medida da alegria enquanto destino humano?


segunda-feira, 16 de novembro de 2009

MULTIDÃO Toni Negri e Michael Hardt

A continuação de "Império", este livro de Hardt/Negri teve menos impacto, embora não o considere menos importante. Não encontraremos em "Multidão" os malabarismos teóricos de "Império", nem tampouco seus momentos brilhantes. É um texto bem mais direto, talvez de quem já fale com autoridade conquistada e não precise se esforçar tanto para ganhar os ouvidos da platéia.

Talvez pudéssemos dividir o livro em 3 temas. O primeiro se refere à natureza política da multidão, conceito que apresentam, o "sujeito histórico" por excelência do nosso tempo (apesar do termo sujeito histórico não ser empregado pela dupla). Há uma certa confusão conceitual por conta da oposição simultânea da multidão ao povo e à massa, por um lado, e ao conceito de classe, por outro, o que é talvez uma falta de cuidado topológico, e o simples fato do livro suscitar esse tipo de discussão é indício inconfundível de que, apesar de na superfície termos um texto que refere a tradição de discussão dos intelectuais públicos, estamos diante de uma obra acadêmica, com suas cifras e jargões. De qualquer maneira, ao contrário da massa e do povo, conceitos unitários, e da classe, que exige uma visão de trabalho e de identidade já moribunda, a multidão é finalmente o aglomerado bio-político (e valeria a pena fazer uma crítica à maneira que os autores usam o termo). Este aglomerado tem a capacidade de agir em conjunto sem apagar as diferenças e tensões. Isto é proposto como uma solução para o sujeito político de hoje, mas há uma certa leveza aí (no mau sentido), irremissível. Creio que os autores acertam ao exigir uma atualização do sentido de conceitos como classe, oprimido, explorado, etc frente ao nosso tempo. Obviamente, propor a manutenção da diferença é necessário e se encaixa no grande projeto do pensamento moderno, mas qualquer agente político precisa de algum tipo de identidade. Então, a defesa da diferença como categoria política de base é necessária, a questão é que isto não pode ser feito rapidamente e sem pensar muito, muito bem, e é exatamente o que Hardt/Negri fazem.

Tanto no conceito de multidão quanto nas outras discussões do livro é necessário a idéia subjacente de estrutura em rede (algo já explorado em "Império"), apresentada como uma espécie de visão de mundo, ou maneira típica de pensar do alto-capitalismo em que vivemos. A estrutura em rede permeia tudo, da forma de guerrear dos grandes Estados às insurgências, das corporações aos movimentos anti-globalização, mais a sensibilidade estética, a maneira de organizar o trabalho, etc, etc. Outra idéia bastante rica é a compreensão de que o conceito de trabalho passou por uma mutação, com o surgimento da produção imaterial(muitas vezes coletiva e não monetarizada) como uma força histórica a ser considerada.

Além da multidão, os outros 2 temas que Hardt/Negri trabalham é a natureza da guerra e da democracia na atualidade. Aqui temos essencialmente um resumo e discussão ligeira de todas as idéias que vêm alimentando a esquerda na última década, especialmente a de Estado de Sítio que Agamben popularizou com "Homo Sacer". De novo, não há propriamente um problema de conteúdo, mas sim de leveza. Propôr uma nova Democracia fundada na "multidão" mundial pós-moderna é mais ou menos uma conclusão necessária das discussões atuais no campo anti-capitalista. A grande questão se refere ao como fundar esta nova soberania. A todo momento os autores deixam claro que seu livro n ão é um "que fazer?", mas é exatamente isto que falta para que possa existir de fato um campo de oposição real.

Outro problema é a ambigüidade dos autores em relação à violência política. Terroristas e grupos armados são utilizados a todo instante como exemplo de violência moderna, com seu funcionamente me rede a anti-unitário. No entanto, não conseguem ou não querem assumir a responsabilidade de fazer o transporte desta violência para o campo revolucionário. É claro que este tipo de proposição é perigoso, mas a verdade é que é impossível pensar uma subversão efetiva sem o horizonte da violência em algum momento.

Esta é uma discussão complicada até porque, como os autores apontam muito bem, o tipo de arma a ser utilizada hoje em dia será necessariamente distinto daquele do século XX, como o partido revolucionário ou a guerrilha. Mas é uma discussão necesária e, de novo, o livro não consegue defender ou apontar um modelo funcional de violência subversiva. Problematizar é obviamente importante, e isto é bem feito, mas soluções precisam também ser propostas, mesmo que isto leve a equívocos e a derrotas, e isto não é feito em absoluto. É nessas horas que um Debord faz falta...

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

ANGELS IN AMERICA, Tony Kushner

Há alguns anos, um dramaturgo americano, Tony Kushner, foi responsável por uma pequena (muito pequena) revolução no teatro ao escrever seu “Angels in America”, drama em duas partes que misturava cultura gay, política da era Reagan e a grande ironia metafísica de anjos desesperados não porque deus está morto, mas porque se ausentou. É bastante interessante encontrar uma peça que dialogue de maneira tão constante e consistente com Walter Benjamin. A questão é que, a começar pelo anjo meio irônico que pede a paralisação da história (em uma referência bastante direta ao “Angelus Novus” de Benjamin), estamos diante de um objeto estético que muito facilmente entra na farsa. Creio que o problema quase incontornável de Kushner esteja em como utilizar uma matriz tão profundamente revolucionária quanto a da obra de Benjamin – que tem um compromisso radical com uma revolução socialista- para falar politicamente do “esquerdismo” ou do liberalismo americano, muito mais complacente, um degrau abaixo da mais branda social-democracia.

Vou me limitar ao comentário político porque de resto a peça é quase perfeita: da aposta nos efeitos especiais cênicos, aos diálogos, à urdidura da ação. Há muito o que dizer, enfim, mas o que mais chama a atenção é a espécie de “idéia fora do lugar” na utilização da obra de Benjamin.

Em primeiro lugar são duas peças distintas, apesar de uma ser continuação da outra. A primeira parte, “Millenium Aproaches”, é um drama sobre solidão e fracasso humano, sobre uma praga, a AIDS, mentiras e covardia. Um resumo da era Reagan segundo a visão de Kushner. A segunda parte, “Perestroyka”, é uma comédia. Kushner chama a atenção no aviso aos encenadores que não chega a ser uma farsa, mas há aí certo engano. Toda a profunda dor humana da primeira parte, que teria um final melhor trágico – e então tocando possivelmente o pensamento histórico de Benjamin-, é diluída em uma série de soluções ex machina. Talvez evitar a grandiloqüência da morte e da tragédia e optar pela esperança, pelo “mais vida” da bênção que é o cerne da segunda parte, seja uma solução madura e mesmo politicamente mais inteligente (pensando aqui a peça como também documento político, como afirmação de uma posição ética), mas que acaba descriando a trama do abismo histórico projetado e pensado por Benjamin. Neste o pesadelo da história é uma esfinge a ser desafiada de maneira franca antes da liberação e ressurreição do humano.

Na segunda parte da peça este abismo é evitado. É interessante pensar que o céu aonde o protagonista vai para dialogar com os anjos perdidos (representado como as ruínas da cidade de São Francisco, uma das mecas da cultura gay e subversiva de um modo geral na América) ainda é o repositório da experiência humana: apesar de tudo ainda há simpatia pelo homem, pelo caminho luciferino e mutante do homem. Mas é isto que Benjamin sonha como o momento messiânico nas teses sobre a história? A chegada do Messias não é propriamente o momento em que “simpatia” é possível, mas sim aquele mais difícil em que ela não é mais necessária, nem a fé, pois o conhecimento e a memória já não são destruídos e cada ruína fala.

Este pequeno deslize meio sentimental diz muito sobre a dificuldade americana de localizar a própria experiência coletiva em relação à experiência mais radical, aos sonhos mais violentos de liberdade que outras partes do mundo alimentaram. Imaginar que o pináculo da história, que o progresso, virá da democracia burguesa que a América do Norte alimentou e desenvolveu em seus momentos mais generosos é quase má-fé. É especialmente desligar a experiência histórica de suas raízes mais poderosas, os ciclos de destruição e ressurreição, de sacrifício trágico e luta constante contra o caos e o absurdo – o que é prometido na primeira parte mas não cumprido na segunda. “Perestroyka” é então uma peça que fracassa num certo sentido, como a segunda parte do “Fausto” fracassa por ter uma incontornável paixão pela esperança descarnada, burguesa, pacífica. A questão é que não há uma boa teoria para avaliar artisticamente esta opção pela vida pacificada. O trágico será sempre mais nobre que a comédia, em parte porque, ao contrário do que possa parecer, é ele que consegue tocar o cerne da esperança, que é o desespero. (originalmente publicado na revista pequena morte: pequenamorte.com )


quarta-feira, 11 de novembro de 2009

A BRIGHT ROOM CALLED DAY Tony kushner

A pergunta que se faz ao fim da narrativa é se a amizade pode ser de fato uma categoria política: como se o mais terrível efeito do nazismo fosse a dissolução de um grupo de amigos, seu enfraquecimento, exílio e anulação do futuro em comum. É uma boa metáfora para a esterilidade que os momentos de dureza histórica trazem, e pensamos imediatamente no que a ditadura brasileira fez com a geração de Torquato Neto e Gullar, ou o que o franquismo fez com o modrnismo espanhol.

O círculo de amigos como uma imagem da célula social mínima, livre e afetuosa, ao contrário das organizações e partidos, sua ruptura, portanto, como o grande desastre humano. O "ovo da serpente" de Bergman tratou de um tema próximo, e a conclusão diante do filme é que o grande terror não é a parcela dantesca e titânica da guerra, dos campos, das ruínas, mas sim algo mais tênue, o próprio humano, como substantivo. A perda do humano, da possibilidade da humanidade, eis o que está quase presente na peça de Kushner. Mas como em "Angels in America" há a recusa de ir até o fundo do abismo, e fica alguma esperança na atriz que decide ficar para trás, nos "buracos na fronteira" de onde se pode escapar da Alemanha nazista.

Nesta perspectiva, a de que o grande desastre é a esterilização de uma humanidade saudável, não desesperada, não insana, a figura de baz ganha uma dimensão heróica. Diante do acidente que o põe dentro de uma sala de cinema com Htler e uma arma carregada, embora compreenda perfeitamente toda perversidade e aberrância (?) do homenzinho, prefere não matá-lo. "Porque logo depois eu seria morto, e eu quero viver". Esta escolha pela própria vida, mais do que um gesto egoísta - e, de novo, Baz compreende o mal que é Hitler - é a projeção da peça em uma dimensão ética, como uma reflexão moral bastante profunda sobre o estofo de homens bons vivendo em tempos difíceis.

O paralelo com a era Reagan através de Zillah, especialmente seu discurso provocativo (e genial em termos de argumentação - mais um indício que estamos diante de uma fábula moral), comparando seu tempo ao nazismo remete diretamente à natureza do mal. Agora, em retrospecto, entendemos o exagero da comparação - aa era Reagan não gerou milhões de mortos, não diretamente, pelo menos - mas o argumento de Zillah, de que caso Pat Buchanan vivesse na Alemanha de 30 é bem provável que frequentasse as festas de Himmler e Göebel, faz pensar até que ponto a distinção entre potência e ato é realmente válida. O mal potencial é ainda assim mal, ou o mal é necessariamente algo que nasce da contingência, e ultrapassar o limite da moralidade é um gesto determinado pelas ciscunstâncias?

Gottfried Sweets, o diabo na peça, é uma alegoria bastante original. Um diabo cansado como um velho burocrata, mas que mantém o poder de desrtruir e de devastar. Resume em uma imagem a surpresa de Hannah Arendt diante da banalidade de Eichmann. Lembro de referência a uam conversa de Foucault (publicada em um MAIS há alguns meses ou anos) em que ele diz que coragem é coragem física, o gesto corporal de dizer não e fechar a boca; o resto serão talvez astúcias e manobras,, e carecem da dimensão de evento que a coragem física possui. Pois bem, este diabo alquebrado, como Eichmann,como a maioria da burocracia nazista, são o reverso desta coragem a que Foucault se refere. Há algo de maligno, de anti-humano, em retirar da força esta dimensão de evento, de momento de decisão em que potência e ato se unem. Matar milhares com o apertar de um botão, ou cometer atrocidades assinando documentos. É este, talvez, o sign ificado de vender a alma, um dos sentidos mais fortes da palavra "desumanização". O problema é sempre como recuperar esta alma de forma coletiva - porque em um nível pessoal haverá sempre as paixões e afetos, ou ao menos o sexo, como instâncias de redenção, embora mesmo isto possa ser destruído e esvaziado. Mas, coletivamente, não há a possibilidade de parar de apertar botões, nem de dar peso e substância a estes pequenos gestos perversos.