quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

VEREDICTO EM CANUDOS Sándor Márai

O que há de novo no romance de Márai é a união entre Canudos e a utopia, ou a redenção, é quase um estrangulamento da maneira que implico os 2 conceitos. Novo não exatamente, uma "Cidade de Deus", um lugar da lei final, está implicada em qualquer evento como Canudos em qualquer autor, inclusive Euclides, mas a ênfase dada por Márai é nova.

E tão intensa, e em certo sentido tão mal-pensada, que acaba por anular a dimensão trágica do evento. Há uma construção interessante ao redor do positivismo da República, como se a primitiva tecnocracia, que poderia representar as grandes tecnocracias, como o nazismo, o stalinismo ou o capitalismo corporativo, fosse flagrada em uma espécie de nudez obscena. Vê-la-emos como este jogo meio ridículo entre civilização encenada, de verniz, e a prática real do extermínio e da sujeira. Opondo-se a isso há uma fome de experiência imediata, sem representação e artificialidade, que seria Canudos. Acima de tudo o lugar do incogniscível, como o médico que abandona a esposa e a casa para viver lá. O lugar do gozo, supomos, ou do Sublime, do grande Outro.

Que no entanto é racionalizado na língua alienígena que é o inglês, uma ótima percepção. "Veredicto em Canudos" pode ser uma sessão de análise, aproveitando-se dos parágrafos finais de Euclides quando ele tenta entender a "loucura" (no sentido clínico, mais que filosófico) da nação. Mas, de novo, antes desta pergunta científica, há a construção lenta de um episódio trágico. Este mergulho no absoluto, na noite disforme, que a princípio Márai aproveita, é neutralizado na narrativa, em que tudo se explica, em que nada se explica. Há talvez duas maneiras de narrar,uma que mantém a tensão, que recusa o entendimento e aceita a tragédia, e outra que, ao nomear o que aconteceu de "trágico", e que concebe o relato como uma meta linguagem, acaba por perdê-lo, talvez por trair os demônios, por não pagar a parte do diabo, que é a seguinte: para conhecer o abismo é preciso dizê-lo em detalhes, em suas partes; mas para fazer isso fica vetado ver como estas partes formam um todo. O que é nomeado no trágico é o silêncio do absoluto, tudo aquilo que o cerca sem ainda chegar a ele. Nomeá-lo, esquematizá-lo, mesmo que numa fábula como se fosse possível tocá-lo, isto é perdê-lo.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

CIDADE DE QUARTZO Mike Davis


"Cidade de Quartzo" é um livro exemplar do que seria uma micro-história. Aqui segue as lições dos Estudos Culturais e da Nova História, sem pudor em narrativizar a História (no sentido de dar mais atenção ao anedótico e às personas históricas e absolutamente nenhuma aos fenômenos maiores e às estatísticas). Até hoje não me decidi se aceito ou não o apelo ao anedótico. Em parte é exatamente isto, algo apelativo, e muitas vezes esconde superficialidade e falta de pensamento sob a rubrica de uma Novicultura. Por outro lado, há um vigor específico nas narrativas menores, nos "petits rècits" das pessoas comuns e personagens secundários. A questão é até que ponto isto é fiel a uma certa idéia de história, até que ponto isto facilita o entendimento de um certo período. Vale dizer, no caso de Davis, "Ecce Los Angeles?"

É exemplar também na medida em que demonstra um pensamento marxista/esquerdista típico de uma visão anglo-saxã. A impressão ao se ler é que para gente como Davis o auge da Revolução é um Estado de bem-estar social, mas nada além disso. Existe a habilidade da crítica, raramente radical, no entanto, ao menos não no sentido concreto do termo. Culpa-se o estabilishment pelas mazelas do mundo, mas raramente esta culpabilidade implica o direito a subversão e revolta. Este legalismo acanhado, caso não seja ultrapassado, eventualmente destrói a possibilidade de um pensamento revolucionário de fato.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

MANEIRISMO Arnold Hauser

O livro de Hauser é um exemplo (bem) acabado do que deve ser uma obra acadêmica. Temos a erudição e a discussão teórica, a referência às fontes primárias, o meio-termo entre o didatismo e a escrita que supõe um leitor educado, minimamente a par da matéria. Hauser propõe um maneirismo que possui caráter próprio, não simplesmente uma "queda" do classicismo renascentista, mas um estilo orgânico, com um desenvolvimento próprio. Não é possível pensar no período sem a referência ao humanismo e sem algum grau de dependência em relação aos mestres italianos, mas a virtude e talvez originalidade de Hauser está em entender que esta relação não é de subserviência, mas de crítica consciente em relação ao estilo. Num certo sentido, o maneirismo corresponderia a uma maturidade e excessiva racionalidade do humanismo, quando chegamos àquele ponto em que a experiência formal já não é tão necessária, ou seja, as técnicas de base todas já estão dominadas, e entramos na possibilidade do radicalmente novo.

Há uma questão que permeia todo o livro de Hauser, que se refere aos limites e exageros desta experimentação. Ou seja, até que ponto a criatividade tem o direito de transformar o visto, quais são os filhos desta transformação. O período do maneirismo corresponde à época mais poderosa das criações humanas: temos algum Michelangelo, El Greco, Hohlbein, Celini, Tintoretto, além de Cervantes, Shakespeare, os poetas metafísicos ingleses. Outros nomes dificilmente seriam considerados maneiristas fora da obra de Hauser, como Calderón, Maquiavel ou Montaigne. Mas não é a questão das listas que complica a discussão, mas sim o conceito de alienação, que Hauser identifica com a essência espiritual do Maneirismo. A alienação marxista, que começa a se instalar a partir das primeiras experiências com o monetarismo, a economia de escala e a racionalização e reificação das relações de trabalho, estaria por trás do abandono do otimismo e idealismo humanista em favor de uma visão mais cínica (mas muito menos dogmática) da vida, do mundo e dos homens. Sob esta chave Montaigne, Maquiavel e a parte mais satírica da obra de Calderón pertenceriam sem dúvida ao maneirismo. A questão é se é válido utilizar um conceito próprio de uma etapa muito mais avançada do capitalismo para dar conta de uma crise espiritual do século XVI. Hauser fala muito pouco das crises religiosas - que dão conta muito bem de Cellini, do último Michelangelo e de El Greco - e, embora através de Maquiavel, dê conta do surgimento do Estado moderno, é difícil atribuir o novo homem público e a nova subjetividade que estão em Montaigne ou Shakespeare a uma consciência prematura do processo de alienação. Por outro lado, o gênio de Cervantes parece ser consituído por este tipo de consciência.

Há um segundo aspecto do livro para além da discussão sobre história das idéias e que me interessa profundamente enquanto artista plástico que é a decrição cuidadosa e paciente das técnicas de representação do maneirismo. O alongamento da forma e o amor ao erotismo, seu sentido e força, ou seja, o que caracterizaria o "maniere" na história da arte são tratados através de exemplos, detidamente e comcuidado. Hauser não chega a falar de "gozo" no sentido psicanalítico, mas é este o sentido que aos poucos vai surgindo da plástica maneirista.

Após uma leitura do livro de Hauser no entanto, é este o sentido mais forte que surge, o Maneirismo como um momento em que a cultura Ocidental recupera a dimensão do gozo, do Grande Outro, do Sublime, com seus abismos e fogos. A teoria da tragédia de Nietzsche se encaixaria bem aqui, com o Maneirismo sendo um daqueles momentos de encontro entre apolíneo e dionisíaco, um período profundamente formal e auto-consciente de seus instrumentos, a ponto de se obrigar a abordar o abismo.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

O ARTÍFiCE Richard Sennett

É bastante impressionante a organização interna do livro, a maneira que Sennett vai e volta pelo tema coordenando, modulando, ritmando episódios para tratar de seu objeto. Há uma imaginação musical na ordem maior do livro. Em vários momentos encontramos Sennett organizando o texto de uma forma mais acadêmica, mais aristotélica, com a divisão em tópicos, enumerações, dignidades e hierarquias. Francamente não consegui definir se este é mais um elemento de ritmo, como um contra-ponto em relação à fluidez ensaística, ou uma desarmonia. Há determinada beleza matemática em uma organização textual aristotélica, além de aparentemente um compromisso ético com a clareza, e talvez isto compense a perda de beleza textual, mais propriamente estética, que um texto sem os limites hierárquicos teria. Por outro lado, há a impressão de uma certa timidez, como um salto final - e arriscado - sempre adiado em direção ao ensaístico e ao artesanato mais complexo do texto. Quanto ao ensaístico, o texto de Sennett é excepcionalmente leve para um autor com sua cultura, embora incomode um pouco a liberade ou sua absoluta falta de preconceito entre low e high brow. O modelo, no entanto, e isto é bem claro, é a tradição de Montaigne, o que justifica em absoluto estas invocações.

Quanto ao tema propriamente dito, ele me toca de forma pessoal e profunda, mas ainda assim me pergunto até que ponto é viável propor aquilo que Sennett chama de artífice - que não é exclusivamente o trabalhador manual especializado - como o modelo básico da dinâmica de conhecimento. O gande mérito do livro é se estruturar em torno da preocupação com uma ética do trabalho em suas dimensões comunitárias, subjetivas, epistemológicas, etc etc, e propor esta ética - esta consciência e prática - como a base da sociabilidade e um dos motores da história. É um livro não tanto sobre conhecimento, mas sobre saberes e sabedoria. Há 2 problemas importantes, centrais, e alguns marginais nessa tese. O primeiro problema importante diz respeito a sua insistência no trabalho enquanto rito social, tirando a solidão da equação. A condição moderna, tanto nossa sensibilidade quanto nossa relação com o conhecimento, é um diálogo solitário ou ao menos um diálogo com a solidão. Este é um fato central e prenhe de consequências, e deve ser abordado em um estudo sobre o trabalho, mesmo que a preocupação seja com o "bom trabalho". Sennett se refere a todo instante à dialética de detecção-solução e criação de problemas enquanto processo individual, mas não comenta a condição necessariamente alienada do homem moderno.

O segundo limite diz respeito a sua intencional (conforme ele deixa claro ao fim do livro) negação da criatividade como fator importante em uma dialética do trabalho, tanto a que vem da idéia romântica de gênio quanto aquela corporativo-capitalista que serve de base para a ideologia da competição e a meritocracia, e isso obscurece a compreensão da dialética do trabalho. A justifica é que o autor parte do princípio de que qualquer ofício é apreensível. Mas, eu diria que é esta criatividade um dos valores mais importantes para o distinto, o diferente, o peculiar, ou seja, toda a dimensão da identidade irredutível que foi justamente uma das grandes preocupações da filosofia do século XX. Preciso deixar claro que considero absolutamente necessário a valorização dos aspectos comunitários, impessoais a não-alienados tanto no trabalho quanto em qualquer outro campo. Mas quanto àquilo que é radicalmente único e incomunicável faz parte de nós tanto quanto o comunitário, e a criatividade é uma de suas divindades. Além disso, todo o campo da arte e do aurático está excluído se tiramos a criatividade da equação...

Uma última nota: Benjamin é citado muito pouco em um livro cujo tema dialoga constantemente com sua obra, pelo menos naquilo que se refere a interesses comuns. Sennett foi aluno de Arendt a vida inteira, o que torna a não-citação algo estranho.



quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

FIGURAS DA IMANÊNCIA François Julien

Há o desconforto constante de se estar diante de uma tradução impossível. Como dar conta do espírito totalizante do pensamento chinês, de seu impulso contante para dizer tudo - céu, terra, homem, príncipe, vagabundo...- em um só gesto? Julien dá conta muitíssimo bem de parte da tarefa, que é fornecer, através da explicação minuciosa de alguns hexagramas, um vislumbre das bases do pensamento chinês. Não podemos falar exatamente de uma visão de mundo, devido às mutações que o sentido do I Ching (e com ele, o pensamento chinês) sofre ao longo dos séculos e milênios, mas sim de uma espécie de base cultural, um ponto fixo de referência que serviu como farol para a cultura chinesa, talvez com a bíblia e os clássicos gresgos para o Ocidente. Há dois grandes méritos no livro. O primeiro é tentar dar conta da impossibilidade de tradução sem brevidade. Há alguma reflexão -não vocalizada, mas perceptível em termos de método, de escritura, de escolhas- sobre o como apresentar o monolito da cultura chinesa em termos que não impossibilitem que este texto permaneça chinês, mas que sejam minimamente compreensíveis para um ocidental. O que é feito então é "narrar" minuciosamente as linhas explicativas dos hexagramas, esclarecendo o que as alegorias chinesas significam, sua ancoragem no pensamento chinês. Haverá faltado talvez uma preocupação histórica com o desenvolvimento e a variação dos sentidos dos hexagramas, mas esse é um problema contornado por Julien através da eleição de um único sábio canônico como referência para seu comentário. Mesmo aí é possível perceber uma espécie de espelhamento em relação ao I Ching: Julien escolhe um ponto fixo de referência a partir do qual pode imprimir seu próprio comentário, mantendo um equilíbrio bastante produtivo entre unidade e variedade.

Esta dinâmica é a base de todo código verbal e linguagem, e que o I Ching dramatiza pois a projeta sobre a possibilidade de representação do próprio universo, humano e divino. Julien chama a atenção para isso a todo o momento, para o fato do livro ser essencialmente uma combinatória extremamente complexa que tem sua gênese em meros signos opositivos e binários, yang e yin, céu e terra, continuidade (_) e ruptura (--). Esta insistência, embora pareça esquecer que o I Ching é essencialmente um código, portanto criticável, permite-nos penetrar no espírito do livro, o do jogo universal, da própria existência como os lances de um jogo contínuo. É uma visão confortadora, que desarma a angústia da vida com a certeza de que há fluxo, ainda que traumático (estranho paradoxo, uma contradição substantiva) do viver, e que este fluxo tem um sentido ético, a que poderemos nos referir em seguida.

O segundo mérito é exatamente a dimensão imanente (e ética) da base da cultura chinesa. O campo e o horizonte da existência humana, e único lugar possível para o surgimento de eventos, é o universo ético da vida prática e pública. O completo desprezo do I Ching pela dimensão dos deuses, sua abdicação de utilizá-los como penhor moral dos atos humanos é o que estabelece a distinção essencial entre Ocidente e Oriente. Ainda que tenhamos passado por Iluminsmo e Revolução Científica, nossa mente, nossa forma mental terá sempre a metafísica como ponto de referência, o que significa que invariavelmente tentaremos entender nossa ação sobre o mundo e a vida através de categorias pouco imediatas, distantes demais da vivência concreta do trabalho, dos eventos, dos combates. O I Ching e, portanto, a cultura chinesa, concebe apenas o universo da vida concreta como digno de fornecer sentido á ação humana. Julien consegue apresentar muito bem esta distinção, assim como os conceitos que norteiam a formação do texto do I CHing: o yang e o ying, a concepção política hierárquica e profundamente conservadora, o entendimento de que a vida humana deve ser modelada em relação à natureza, e, finalmente, a delicada tensão entre a ruptura e a continuidade, a transformação, a sucessão de acontecimentos.

O livro das mutações é impressionante, e após a apresentação de Julien ele torna-se ao menos um pouco mais compreensível. Especialmente, como disse anteriormente, somos apresentados a uma maneira de conceber o cosmos em que a oposição entre homem e mundo não é uma ruptura a ser recuperada exclusivamente através de um gesto redentor ou iluminado; antes, essa oposição e seus derivados são constantemente apagados e renovados. Tanto redenção quanto queda ocorrem continuamente. Se a ação humana deve ser ética, isso se dá não devido a um decreto divino, mas porque há a compreensão de que o que confere sentido a essa ação é algo muito próximo ao prazer estético, a possibilidade de troná-la parte de uma narrativa coletiva, universal, política que o I Ching tenta estabelecer e teorizar.

A grande questão é que necessariamente esta paixão pelo imanente evita revoluções e inovações legítimas. Apenas por um exagero geográfico falamos em Ocidente, e mesmo neste caso somos obrigados a apagar e calar uma série de diferenças que inúmeras revoluções e traumas causaram a nossa cultura. Não é o caso chinês, que tem uma história contínua de 5000 anos. Esta continuidade é poderosíssima, e benigna na medida em que não condena seus filhos à infelicidade que fatalmente um ocidental sentirá: as metas desse são sempre impossíveis porque a Grande Lei que as legou no fundo não existe. Este oco constituinte é o que nos torna tão perversos e aflitos, mas é também que exige a inovação contínua, como um tubarão que não possa dormir. Um chinês não viverá talvez essa infelicidade, mas me pergunto se a existência em um universo fechado, em que a lei, ainda que dada pela experiência, é irremovível, não é também um tipo de angústia.